sábado, maio 27, 2006

Os bandidos na mesa do café

Fernando Gabeira, na Folha Online

Depois de uma hora de braçadas tranqüilas, saio da piscina e subo numa arquibancada de madeira para tirar a toalha da mochila. Olho para uma edificação baixa de tijolos vermelhos, com uma placa: alameda Paissandu. Diante dela, mesas brancas, cadeiras. Numa delas dorme o gato Amaral. O sacana do Amaral, como o chamamos: gordo, castrado, sonolento, ainda assim faz das suas, encostando-se nas gatas, irritando a torcida do Flamengo, "precisamos acabar com esses gatos no clube".

Nesses momentos de contemplação, nuvens desenhando anéis em torno da estátua do Cristo, sinto uma dor por ter dedicado tantos anos à política, com tão escassos resultados. Invade-me uma vontade de mudar de vida, fazer como o narrador do romance "O Enigma da Chegada" (de V.S. Naipaul), que se retira para o interior e passa apenas a observar e escrever o que está na sua frente.

Segunda-feira, auge da crise de violência em São Paulo, parti para Brasília para fazer um discurso de solidariedade e propostas, pensado durante o fim de semana sangrento. Não pude realizá-lo até o fim, embora o plenário estivesse vazio. Minha palavra foi cortada por um presidente ocasional. Ele vem do Norte toda segunda-feira e assume a presidência porque não há ninguém para abrir as sessões. Dá a impressão aos seus eleitores de que é importante, embora já tenha sua prisão preventiva decretada e inúmeras processos. Limitei-me a dizer: "Vossa Excelência é um bandidaço", embora soubesse que até os insultos seriam usados por ele junto aos eleitores como sinal de importância. A um jornal de Brasília, declarou que aqueles que assistem à TV no seu Estado pensam que é o presidente da Câmara.

Ele é desse numeroso e sórdido grupo com que, depois de tantos anos de lutas e sonhos, tenho de conviver no café da Câmara: contas fantasmas, entidades fantasmas, ambulâncias superfaturadas, desvios de verbas no hospital do câncer. A própria luz do Planalto atravessando as vidraças e banhando os flocos de poeira que flutuam nos torna também fantasmas, e você olha a mancha de iogurte na mesa do café, duvida se aquilo não é um ectoplasma desses putos que pintam o cabelo e beliscam a bunda das secretárias.

Marcola, o líder do PCC, já leu mais livros do que todos eles juntos; os da minha geração, que tiveram uma base político-militar -não no sentido de terem feito ações armadas, mas por terem curiosidade em relação às leis da guerra-, esses praticamente saíram de cena.

Fiquei surpreso ao perguntar por um grande nome do Partido Verde alemão, que surgiu nos anos 60, e soube que, ao deixar o governo, está quase aposentado. Lembrei de tantos outros que se voltaram para suas especialidades acadêmicas, dos que morreram, dos que simplesmente deram uma banana para a idéia de transformar o mundo.

De uma certa maneira, foram poupados dessa humilhação que sinto todos os dias ao ver que os bandidos estão triunfando na vida pública, que não só tomaram conta de tudo mas também tomam café ao seu lado, riem para você, falam sobre o tempo e reclamam da dureza da vida política.

É uma ilusão pensar que o mundo do crime ignora essas variáveis. Marcola já esteve aqui depondo e, nos poucos minutos que passei pela sala, olhou-me com muita freqüência, como se quisesse dizer: com esse tipo de gente me interrogando jamais sairá outra coisa, além do desprezo recíproco.

O mundo que está ruindo aos meus pés é muito desconcertante, pois leva consigo toda uma forma de pensar a política que nos reduz ao ridículo de tentar trazer a guerra urbana de São Paulo para o parlamento e ser interrompido por um idiota que está posando de presidente para seus eleitores do Norte.

O mundo que está ruindo nos impõe a humilhação de chamar de Congresso brasileiro um lugar onde os dirigentes da mesa estão mergulhados num escândalo e nem sequer pedem licença para serem investigados, um lugar onde o corregedor, num ano eleitoral, foi o primeiro a ser multado pela Justiça por fazer propaganda fora de tempo.

Numa semana tão importante, talvez não devesse enfatizar minhas frustrações. Acontece que não estou sendo humilhado sozinho, nem o está a pequena parcela de deputados honestos.

Enquanto não se desvendar o elo entre as quadrilhas que queimam ônibus, metralham policiais, fuzilam inocentes e os bandidos que nos cercam, poucos vão sentir a humilhação que sinto. E quando falo de vínculo não me refiro a advogados, emissários ou mesmo um ou outro deputado que possa estar ligado ao crime organizado. Refiro-me ao plano simbólico tão bem expresso na célebre frase carioca: está tudo dominado.

O tudo dominado revela-se não apenas em números mas também em encenações falsas, pequenas omissões, um rígido controle da agenda para que venha à tona o debate dos verdadeiros problemas do país.

Aqui as matracas, os "treisoitões", as bananas de dinamite transfiguram-se em questões de ordem, permita-me um aparte, regimentos internos. Aqui e ali, no Planalto, onde instalamos um governo destinado precisamente a mudar tudo isso e que, no fim das contas, apenas exacerbou o processo, degradando-se e nos degradando.

Só penso em aposentadoria quando vejo o Amaral, gordo, castrado e sacana: divagações à beira da piscina. Não rolei tanto barranco para entregar o ouro aos bandidos. Se há uma boa maneira de viver os últimos dias, essa maneira ainda é o combate.

Coluna publicada no dia 20/05/2006.

sexta-feira, maio 12, 2006

Os cacos de "nuestra América"

Crônica de Clóvis Rossi, na Folha Online

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva contabiliza 17 visitas a países sul-americanos. Contabiliza também pelo menos duas visitas de cada colega seu da sub-região ao Brasil, para não falar das muitas reuniões de cúpula de que participa com eles todos, em diferentes formatos.

Tudo para ver a América do Sul em cacos (expressão que não é de Lula, mas minha; ele prefere dizer "o clima não é bom"). As contas do Palácio do Planalto mostram os seguintes conflitos:

1 - Argentina e Uruguai, em torno da construção de duas fábricas de celulose na fronteira. Néstor Kirchner, o presidente argentino, já fez saber ao brasileiro que não quer nem ver Tabaré Vázquez, seu colega uruguaio. O confronto parece muito centrado nos dois mandatários, mas consta que o chanceler uruguaio, Reinaldo Gargano, será defenestrado, o que pode eventualmente ajudar.

2 - Na CAN (Comunidade Andina de Nações), o venezuelano Hugo Chávez provocou uma implosão, ao sair unilateralmente, denunciando os acordos comerciais que Colômbia e Peru negociam com os EUA.

Como se fosse pouco, o Planalto trabalha com a certeza de que o eleito no Peru, no segundo turno, será Alan García, que trocou com Hugo Chávez ofensas ainda mais pesadas do que as que Evo Morales fez à Petrobras.

A CAN é essencial para o projeto da Comunidade Sul-Americana de Nações, menina dos olhos de Lula (e de sucessivos presidentes brasileiros). O projeto original previa juntar o Mercosul à CAN e pronto.

3 - O conflito do gás entre Brasil e Bolívia, mas que envolve também a Argentina (via a Repsol, espanhola/argentina).

O irônico nessa história toda é que os conflitos se dão só entre presidentes da chamada "onda de esquerda" na América Latina (onda mal chamada, aliás).

Tudo somado, é natural que Lula esteja com "a paciência até as meias" (paciência não é bem a palavra usada, mas neste espaço não fica bem escrever a correta).

E quem vai apagar as luzes?

Do Blog do Sérgio Dávila

Essa é de casa, ninguém contou. Ele e ela estavam no hotel Four Seasons de Beverly Hills, em Los Angeles, para as entrevistas de lançamento do filme "Missão Impossível 3". Às dez da noite, sentaram-se no Gardens para jantar. Antes da sobremesa, ele se levantou para ir ao banheiro. Foi quando um senhor, duas mesas para a direita, com um acompanhante coreano, se virou para ela e disse:

"Que língua é essa que vocês estão falando?".

É uma pergunta freqüente na Gringolândia, já que os americanos têm o ouvido treinado para decifrar o espanhol, as línguas de origem árabe e olhe lá.

"Português", respondeu ela, ainda simpática.

"E você não acha que deveria tentar falar a nossa língua quando está no nosso país?", revidou o senhor.

"Não. E o senhor não acha que não deveria ficar ouvindo a conversa dos outros?", respondeu ela, meio brincando, meio achando o velhinho bem abusado.

"Quando você volta para a sua casa?", perguntou o senhor.

"Em dois dias".

"Você mora no Brasil?"

"Não."

"Sabia que existem mais de 11 milhões de imigrantes ilegais nos Estados Unidos?"

"O senhor não precisa se preocupar nem comigo nem com meu amigo. Nós temos tanto visto como muita vontade de voltar ao Brasil."

"Os imigrantes ilegais são o maior problema deste país hoje em dia, nós temos de pagar impostos mais altos do que seriam por eles e lidar com muitos problemas sociais que eles causam, como a violência urbana e o tráfico de drogas."

"Eu imagino que o senhor tenha uma idéia brilhante de como resolver isso?"

"Temos de prendê-los e mandá-los de volta ao país de onde vieram, é o jeito."

"E o senhor está preparado para limpar seus banheiros, se servir sozinho nos restaurantes, recolher o lixo e mandar seus filhos, netos e bisnetos para as próximas guerras que os EUA inventarem?"

"Esse argumento é ridículo. Tem muito americano desempregado, que não aceita qualquer salário, como os ilegais."

"Nós dois estamos aqui a trabalho, não se preocupe."

"Trabalho, trabalho, é isso que todo imigrante vem dizendo que quer, aí começam as gangues, a violência, o tráfico de drogas. Fora os que chegam dizendo que vieram fazer turismo e depois nunca mais vão embora. Temos de mandar todos embora."

"O senhor faça como quiser."

"É claro que a senhorita não se irrita com esse assunto, este não é o seu país e tanto faz que centenas de latinos atravessem o deserto todas as noites. Temos de controlar nossas fronteiras."

"E que tal mandar todos para o Iraque? O problema dessa guerra injusta que o seu país inventou não é também a falta de soldados? Dê uma M-16 para cada ilegal, está resolvido o problema."

"A senhorita mistura dois assuntos que não têm nada a ver um com o outro."

"Não mesmo?"

"A senhorita está tentando fazer com que meu argumento pareça ridículo".

"Não, só estou tentando me livrar dessa conversa estranha."

"TEMOS DE MANDAR TODOS OS ILEGAIS EMBORA", gritou o senhor, assustando seu ajudante coreano, que pediu a conta correndo.

"Se o senhor parar de me aborrecer com essa conversa, vai ter mais energia para perseguir os ilegais."

"Vocês latinos acham que tudo é piada."

Foi sentando na cadeira de rodas e, já a caminho da porta, pediu para o coreano parar.

"Boa noite, senhorita", disse, de longe. "Aproveite sua estada na América", concluiu, confundindo o nome do país com o do continente e revelando, involuntariamente, a origem de toda a briga.

quinta-feira, maio 11, 2006

'Terra em Transe' restaurado e em DVD

Do crítico Rubens Ewald Filho, no UOL Cinema

"Terra em Transe", o seminal filme de Glauber Rocha (1938-1981), foi, com o espetáculo "O Rei da Vela", de José Celso Martinez Correa, uma das origens do Tropicalismo. Agora o filme sai em disco duplo em DVD e em cópia restaurada em ótima qualidade.

Com epígrafe de Mario Faustino ("tanta violência, mas tanta ternura"), o longa conta com a participação marcante, mas totalmente sem falas da então modelo Danuza Leão.

Quando foi lançado em vídeo, o filme teve um de seus rolos trocados e ninguém percebeu, já que se tratava de uma narrativa confusa.

Longe de ser um filme fácil, "Terra em Transe" prenunciava o cineasta caótico que cada vez mais Glauber Rocha se tornaria, além de discursivo, exagerado, polêmico, mas sempre brilhante.
Para o estrangeiro, o filme é de difícil compreensão, mas o brasileiro identifica melhor os arquétipos de nossa antiga política (personagens parecidos com Jânio Quadros, a velha turma do "café-com-leite", Paulo Autran como Carlos Lacerda etc).

Mas é sempre preciso ver que se trata de uma alegoria. A câmera vem do mar (Autran entra em cena como o político Diaz carregando uma bandeira e um crucifixo), que relembra as origens portuguesas (Clóvis Bornay aparece fantasiado na praia, e Diaz é coroado pelo Rei Momo) e tudo se degenera em samba, carnaval e cerveja (na época ainda não era pizza). "Terra em Transe" é uma sátira implacável da nossa política e se mantém atual nesse sentido.

Com a mágica câmera na mão de Dib Lutfi, o filme é um extraordinário exercício de estilo e um retrato psicológico do que é ser brasileiro, do que é fazer política no Brasil, onde, como diz José Lewgoy numa cena, "tudo no fim dá certo".

Numa revisão, impressionam várias coisas em "Terra em Transe":

1) como o filme foi premonitório, prevendo as guerrilhas que iriam suceder ao AI-5 da ditadura e exemplificadas pela atitude de Jardel Filho;

2) todo o filme é um delírio de um poeta que se rebela contra a situação e vai morrer por isso. Então tudo é permitido e justifica as ousadias narrativas, hoje já um pouco absorvidas e mal copiadas. Resiste especialmente bem o lado poético do diretor;

3) toda a marcação é teatral, encenada com a câmera perseguindo os atores, e não o contrário;

4) o filme usa excepcionalmente poucas locações e tipicamente cariocas, como o Teatro Municipal, a Galeria Menescal e o Parque Laje, mas sem revelar que é o Rio.

Sem dúvida, "Terra em Transe" ainda é uma obra-prima.

Como extras, o disco 2 traz um excelente e longo documentário "Depois do Transe", com cenas do documentário "Cinema Novo", de Joaquim Pedro de Andrade, e cenas inéditas do filme (como Sobras da Montagem), além de depoimentos do fotógrafo Luiz Carlos Barreto, do montador Eduardo Escorel, do produtor Zelito Viana, do câmera Dib Lutfi, do compositor Sérgio Ricardo e dos atores Paulo Autran, Francisco Milani e José Lewgoy. Tem ainda o curta "Maranhão 66" (de Glauber, sobre a posse de José Sarney), trailer de cinema (montado por Walter Lima Jr.), vídeo sobre a restauração e galeria de fotos.

Lula 'humilhado' por Chávez

Da Folha Online

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva está sendo transformado pelo seu colega venezuelano, Hugo Chávez, em um "espectador irrelevante" diante dos últimos acontecimentos na América do Sul, diz reportagem desta quinta-feira da revista britânica "The Economist".

"Muitos brasileiros reclamam que seu presidente está se tornando um espectador irrelevante em seu próprio quintal", diz o texto. Segundo a reportagem, a resposta do presidente Lula à nacionalização das reservas de petróleo e gás da Bolívia foi "débil". A nacionalização foi decretada no dia 1º deste mês pelo presidente boliviano, Evo Morales, que, segundo a revista, "foi aconselhado, e aparentemente inspirado, por Chávez".

"Para os críticos do governo Lula, a submissão do Brasil desmascarou a confusão no coração de sua política externa", diz a reportagem, que menciona ainda um suposto viés ideológico nas relações internacionais do país, colocado acima dos interesses nacionais.

O texto destaca que, como Lula provavelmente irá se candidatar à reeleição, parte dessas críticas são apenas manifestação da oposição, mas "também há algum fundamento", e cita como exemplo a busca do Brasil por maiores ligações com países africanos, do Oriente Médio e da Ásia, "com resultados esquálidos".

A reportagem lembra ainda a situação frágil do Mercosul e da Comunidade Sul-Americana de Nações, "fadada à irrelevância" devido às divisões internas.

O projeto de Chávez para a América do Sul é diferente daquele do Brasil, lembra a revista. "Onde o Brasil quer integrar, a Venezuela quer dividir. Sob Chávez, a Venezuela não respeitou nem contratos nem regras democráticas. O Brasil não apenas ficou em silêncio sobre tal conduta, como encorajou a Venezuela a entrar no Mercosul."

"O Brasil falhou em articular uma alternativa clara ao 'chavismo'", acrescenta a reportagem. "Há não muito tempo, os líderes (do Brasil) tinham uma visão de integração regional baseada na democracia (...)

Não é difícil concluir que essa visão está sendo sacrificada em nome de um impulso pueril de envolver aqueles que vendem a retórica populista do 'antiimperialismo'. Os brasileiros podem pagar um preço por isso em breve."

Livros essenciais para entender o cinema brasileiro

A maioria das obras essenciais sobre o tema foi escrita entre 1960 e 1980, com destaque para Paulo Emilio Salles Gomes

Publicado no site da revista Entrelivros

A despeito da considerável quantidade de livros sobre cinema brasileiro que vem sendo lançada nos últimos anos, a esmagadora maioria das obras essenciais sobre o tema foi escrita entre os anos 1960 - quando começou a ser constituída uma tradição crítica - e 1980. Cabe ressaltar a importância de Paulo Emilio Salles Gomes (1916-1977), responsável pela formação da primeira geração de pesquisadores dedicados ao tema, muitos deles autores dos livros citados a seguir.

Burguesia e cinema: o caso Vera Cruz é um estudo pioneiro sobre a primeira e malograda tentativa de implantação de uma indústria cinematográfica em moldes hollywoodianos, entre os anos de 1949 e 1954. Nele, Maria Rita Galvão procura compreender a empreitada como manifestação do poder da burguesia industrial paulista, capaz de financiar a produção de filmes, vistos como expressão ideológica dessa classe social. Parte da produção da Vera Cruz é tratada em Revisão crítica do cinema brasileiro, nos capítulos dedicados a Alberto Cavalcanti e Lima Barreto. O livro afirma um programa estético e político para o cinema brasileiro, critica o modelo faraônico da Vera Cruz e defende a invenção de uma linguagem adaptada à exigüidade de recursos. A partir dessas concepções, Glauber Rocha vê Humberto Mauro como um predecessor do cinema novo, assim como o cinema independente dos anos 1950.

Glauber Rocha continua no centro das atenções de Ismail Xavier em Alegorias do subdesenvolvimento, que discute Terra em transe como resposta às perplexidades geradas pelo golpe militar de 1964. O ensaio toma a alegoria como noção capaz de estabelecer identidades e diferenças entre este filme e outras obras capitais do período 1967-1970, como O bandido da luz vermelha, Brasil ano 2000, Macunaíma, O dragão da maldade contra o santo guerreiro, O anjo nasceu, Matou a família e foi ao cinema e Bang bang.

Os anos de chumbo também são focalizados em Cinema, estado e lutas culturais - anos 50, 60, 70, que investiga o impacto da ação estatal na produção cinematográfica. A ênfase recai sobre as décadas de 1960 e 1970, quando surgiram o INC (Instituto Nacional de Cinema) e a Embrafilme, órgãos encarregados de pôr em prática a política cinematográfica do regime militar. O sociólogo José Mário Ortiz Ramos reflete sobre as relações cinema-Estado procurando delinear os contextos e mecanismos de produção das obras em um período marcado por intensa politização. Ramos está especialmente atento a uma questão: a da relação de forças na produção cinematográfica, que aparece no comportamento dos cineastas diante do Estado ditatorial, na constante luta pela hegemonia no campo cultural.

Considerado o ensaio mais célebre e polêmico de Paulo Emilio Salles Gomes, Cinema: trajetória no subdesenvolvimento marcou o debate cinematográfico nos primeiros anos da década de 1970 com sua defesa incondicional do filme brasileiro. Constatou o enfraquecimento do cinema novo, o desespero da nova geração que poderia renová-lo e associou o subdesenvolvimento à estética do cinema nacional - como já havia feito Glauber Rocha no ensaio Uma estética da fome.

O documentário é o tema de Cineastas e imagens do povo, de Jean-Claude Bernardet, a mais densa obra dedicada ao tema no Brasil. Trata dos documentários mais importantes produzidos entre os anos 1960 e meados da década de 1980, caracterizados por forte conteúdo político e intenções pedagógicas. Alguns filmes bem mais recentes - que enriqueceram o gênero com novas abordagens estéticas e ideológicas - foram incluídos na reedição do livro, em 2003.O cinema contemporâneo tem sido objeto de estudos, entre os quais se destaca Cinema de novo, um balanço crítico da produção brasileira de meados dos anos 1990 a 2003. Luiz Zanin Oricchio discute os filmes do período a partir do modo pelo qual representam o Brasil e se relacionam com o público. A análise dialoga constantemente com a produção dos anos 1960, especialmente com o cinema novo, pois destaca temas caros a este, como identidade nacional, a relação com o outro, a representação da história, a violência, a vida privada, a política, o sertão e a favela, as relações de classe.

Entre as obras coletivas que sistematizam a evolução do nosso cinema, cabe mencionar História do cinema brasileiro, organizada por Fernão Ramos. O livro é uma boa introdução ao tema, pois traz uma visão "horizontal" da produção cinematográfica brasileira dos primórdios ao fim dos anos 1980, e não deixa de apresentar detalhes de certos aspectos.

• Burguesia e cinema: o caso Vera Cruz
Maria Rita Galvão.Editora Civilização Brasileira

• Revisão crítica do cinema brasileiro
Glauber Rocha - Editora Cosac & Naify

• Brasil em tempo de cinema
Jean- Claude Bernardet - Editora Paz e Terra

• Sertão mar – Glauber Rocha e a estética da fome
Ismail Xavier - Editora Brasiliense

• Alegorias do subdesenvolvimento
Ismail Xavier - Editora Brasiliense

• Cinema, Estado e lutas culturais – anos 50, 60, 70
José Mário Ortiz Ramos - Editora Paz e Terra

• Cinema: trajetória no subdesenvolvimento
Paulo Emilio Salles Gomes - Ed. Paz e Terra

• Cineastas e imagens do povo
Jean- Claude Bernardet - Companhia das Letras

• Cinema de novo
Luiz Zanin Oricchio - Estação Liberdade

• História do cinema brasileiro
Fernão Ramos (org.) - Art Editora

quarta-feira, maio 10, 2006

A América Latina se despedaça em disputas

Do jornal La Vanguardia

A América Latina nunca esteve tão dividida. Praticamente não há um país que se dê bem com seus vizinhos. A tão propalada integração continental se transformou em um bate-boca que, como numa família desunida, apresenta todo tipo de acusações. Na reunião que realizarão neste fim de semana em Viena com a União Européia, os países latino-americanos mostrarão tensões que não correspondem só a diferenças ideológicas como as que poderiam contrapor a Venezuela ao México, Peru e Colômbia.

A tensa relação entre dois países próximos, Uruguai e Argentina, governados por presidentes de centro-esquerda, demonstra que o problema é mais complexo, reflete a existência de interesses nacionais contraditórios e a ausência de um projeto sério de integração. Bolívia e Chile não mantêm relações diplomáticas devido à exigência dos governos de La Paz de ter uma saída soberana para o oceano Pacífico.

Somente 16 meses depois do nascimento da Comunidade Sul-Americana de Nações, que tinha como inspiração a União Européia, a região está muito dividida. A decisão do Peru de apresentar na Organização de Estados Americanos (OEA) uma queixa contra a Venezuela por sua intromissão nas eleições presidenciais mostra fissuras que estremecem alianças e vizinhanças. Na maioria dos casos, Hugo Chávez é o promotor das divisões.

O conflito entre Caracas e Lima eclodiu depois das acusações de que Chávez financia o candidato nacionalista Ollanta Humala, que ganhou no primeiro turno das eleições com 30,6% dos votos. A crise se transferiu para a OEA, onde o Peru denunciou a "ingerência inaceitável" de Chávez nos assuntos internos do país, em uma troca de acusações na sessão ordinária de seu Conselho Permanente. O embaixador peruano quis apresentar um vídeo sobre as declarações insultuosas do presidente venezuelano. O pedido foi rejeitado porque Chávez, graças à doação de petróleo, ganhou um voto incondicional dos países do Caribe.

O desencontro da Venezuela com o Peru soma-se aos ocorridos com a República Dominicana, Costa Rica, Colômbia, Nicarágua, El Salvador e, especialmente, o Chile, pela declaração imprudente de Chávez reivindicando o mar para a Bolívia. O incidente mais grave é vivido com o Peru, porque até agora nenhum chefe de Estado havia ameaçado romper relações diplomáticas se um candidato (referindo-se a Alan García) ganhasse as eleições.

Chávez surpreende com doações e acordos de cooperação com comunidades e países, improvisando apoios milionários para candidatos populistas. O presidente da Nicarágua, Roberto Bolaños, também se queixa do financiamento por Chávez da campanha do sandinista Daniel Ortega. Diante do que foi acordado no Caribe insular, onde a Venezuela dá petróleo em condições vantajosas para seus governos, em El Salvador e na Nicarágua é para associações de esquerda.

No México, Chávez é peça de confrontação eleitoral. O candidato Felipe Calderón, do PAN, no governo, acusa seu concorrente populista, Andrés Manuel López Obrador, de querer seguir os passos de Chávez, e por isso denuncia em sua propaganda que é um perigo para o México. "Acusam López Obrador de receber dinheiro da Venezuela. Corre a fama de que Chávez financia com mão generosa todos os candidatos do continente que vestirem a camisa da esquerda", indicou o escritor Sergio Ramírez, ex-vice-presidente da Nicarágua.

Nesse quadro ocorreu a censura na Comunidade Andina de Nações (CAN), formada por Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela, depois que Bogotá e Lima assinaram tratados de livre comércio com Washington. Chávez anunciou "a morte" da CAN, com o argumento de que os tratados com os EUA fragilizam o bloco. A Venezuela retirou-se da CAN e suas relações com o México e o Peru estão congeladas.

Mais ao sul, Uruguai e Argentina atravessam o pior conflito de sua história recente, devido à instalação de fábricas de papel em um rio fronteiriço. Os dois países apelaram ao Tribunal de Haia, o que aumenta as tensões.

Outra rixa surgiu quando o presidente uruguaio, Tabaré Vázquez, disse a seus sócios Lula da Silva e Néstor Kirchner e ao próprio Hugo Chávez -todos de esquerda, como ele- que o Mercosul já não serve, e por isso vai se retirar da aliança caso seja impedido de negociar um tratado comercial com os EUA. A última briga surge da decisão do presidente Evo Morales de nacionalizar os hidrocarbonetos, para o que enviou o exército aos locais de extração. Lula ficou incomodado com a medida, porque a companhia brasileira Petrobras controla 49% dos recursos, assim como o argentino Kirchner, cujo país recebe boa parte do gás boliviano.

A relação aparentemente boa que existia entre os governos de esquerda da América Latina, que são maioria, transformou-se em uma troca de acusações que evidencia que a união era só uma miragem e que os dois blocos são irreconciliáveis. Depois das contendas das últimas semanas fica claro que há pelo menos duas esquerdas na região.

Publicado no UOL Mídia Global.

terça-feira, maio 09, 2006

Perplexidade de um morador do Rio

Fernando Gabeira, na Folha Online

Uma pesquisadora do Piauí me fez algumas perguntas sobre identidade nacional. Era uma tese. Temi decepcioná-la ao dizer que "identidade nacional" tinha uma carga de ficção, daí o papel dos romancistas nos países que emergiram do colonialismo. E mais ainda: fui logo dizendo que identidade individual também tem uma carga de ficção, que muitos duvidam de nossa capacidade de colocar muitas determinações e afirmar: isto sou eu.

O tema voltou à minha cabeça com as denúncias de corrupção no Rio e a surpreendente resposta de Garotinho, proclamando sua greve de fome. Percebi em todo o processo um pouco da esquizofrenia da minha vida cotidiana na cidade. Estou lendo "Origem", de Thomas Bernhard, em que ele desanca Salzburgo como a gênese de seus males.

Não posso dizer o mesmo da cidade que escolhi para viver. Gosto de chegar de avião e vê-la lá embaixo, gosto de sentar na Pedra do Arpoador depois de uma longa viagem, andar de sandálias Havaianas e bermudas.

Jamais ignorei que ali existem cemitérios clandestinos, fornos nas pedras onde se assam as pessoas vivas, ônibus incendiados, as labaredas devorando carne inocente. Os únicos representantes do Estado com que falei, polícia e sistema penitenciário, ao longo desse tempo mostram que pelo menos isso não ignorei em nosso convívio social - a violência nas ruas e nas prisões.

Mas esse casal que governa o Rio, Garotinho e Rosinha, me desconcerta. Produz uma espécie de branco. Jamais os critiquei, exceto de passagem; jamais fiz sugestões, enfim, jamais me animei a algum tipo de contato. Eles lá, eu aqui; era como se eu vivesse num outro país, desses em que não importa tanto saber quem governa.

O casal estimula - com sua fórmula cinismo-cheque-cidadão, com sua religiosidade um pouco ingênua - tanto a ironia quanto a estranheza de ter mergulhado nessa depressão histórica, viver num lugar onde se evita a todo custo saber o que fazem os governantes.

No final, eles acabam invadindo sua fortaleza. Vendo o filme "Crash - No Limite", encontrei um diálogo que me impressionou. Dois assaltantes levaram um carro roubado para vender numa oficina. O dono constatou que havia manchas de sangue no carro e fez uma rápida observação, ao recusar o negócio. Naqueles programas policiais do Discovery eles descobrem um crime através de sangue na roupa, até num copo de plástico do Kinsburg. E sempre aparecem aqueles capiaus algemados, perplexos por terem sido capturados pela polícia. "Vocês querem que eu seja um daqueles capiaus algemados?"

Garotinho e Rosinha emergiram não com enfoque policial. Na imaginação, não eram prisioneiros algemados por algum tipo de investigação. Apareciam não como os pouco informados sobre o avanço técnico da polícia, mas sobre a complexidade da história. Por mais que sejam simples as idéias de quem governa, ele é necessariamente jogado numa roda-viva, num processo tão intrincado que se arrisca a terminar olhando para as câmeras com um ar atarantado dos prisioneiros no programa do Discovery.

Lendo Alasdair Macintyre, percebi como ironizava o cosmopolitismo do "New York Times" diante do discurso político dos pastores evangélicos. Talvez tenha errado por esse caminho, por desdenhar o conteúdo religioso no governo Rosinha, deixar passar em branco leis que obrigam o ensino da religião, que recuperam o criacionismo.

Muitos ficaram perplexos com a decisão de Garotinho entrar em greve de fome - um prato suculento para os humoristas. Os políticos, então, não conseguem entender como alguém, pensando com suas categorias, pode se meter num beco sem saída.

Agora devo ampliar minha visão. Acompanhá-los como uma saga religiosa na vida pública. Se as denúncias de desvio de dinheiro se confirmarem - as ONGs espalhadas num extenso "laranjal" são um forte indício dessa confirmação -, estamos diante de algo parecido com o que aconteceu no país.

De novo voltaremos à frase que o século 21 deveria ter superado: os fins justificam os meios. Religiões seculares, como marxismo, espirituais, como a de Garotinho, sentem-se detentoras da felicidade comum e, em nome dela, saem plantando "laranjas" e CPIs.

Essa dimensão salvacionista é um dado real no Brasil. Só que os salvadores têm dado grandes prejuízos aos cofres públicos. Uma possível trajetória de Garotinho é transitar da esfera da política para a religiosa e ancorar-se nela: sair, por exemplo, subindo em fios e fazendo milagres, como aquele personagem de Pasolini.

O mundo religioso sempre colocará a salvação como uma categoria essencial. Na esfera pública, estamos no limiar de uma época em que se dispensarão os salvadores. Garotinho vai emergir desse processo um pouco perplexo diante do mecanismo que pôs em marcha. Ele pode até ir para o Céu, mas o julgamento da história brasileira pode ser implacável como os investigadores do Discovery.

De qualquer forma, já não é mais possível andar pelas ruas do Rio ignorando o casal que nos governa, sobretudo agora que está em transe religioso, ameaçando com o peso da mão de Deus, realizando, ainda que na imaginação, um encontro entre igreja e Estado.

Andar de Havaianas e bermudas num mundo surreal, em que Darwin é um jogador reserva, a governadora reza diante do marido em greve de fome, o pau comendo entre os seguranças, os tiroteios noturnos, a dengue e alguém do Piauí a perguntar pela identidade. Só fazendo um samba.