terça-feira, julho 08, 2008

Betancourt: 'À noite punham a corrente no meu pé'

24 horas na vida da ex-refém que passou seis anos em cativeiro

Pilar Lozano, do El País

"Era uma levantada às 4 da manhã, precedida de uma insônia provavelmente desde as 3." Assim Ingrid Betancourt começou o relato sobre sua vida na selva, em uma entrevista coletiva que deu na última sexta-feira (dia 4) na embaixada da França em Bogotá, poucas horas antes de partir para Paris. Essa foi a rotina em seus quase 2.500 dias de cativeiro:

"Rezar o rosário e esperar as notícias; o contato com os espaços de rádio que nos davam a possibilidade de nos comunicar com nossas famílias (...) A retirada das correntes às 5 da manhã, servido o 'tinto' (café) às 5. Traziam as botas mais ou menos nesse momento. Fazer a fila para esperar a vez para 'chontear' - é um termo muito guerrilheiro: ir ao banheiro dentro de uns buracos horríveis, porque não há latrinas, não há nada, então tínhamos de esperar a vez para ir atrás dos matos fazer nossas necessidades nesses buracos."

Depois um desjejum com "chocolate ou algum caldo..." "Tentar encontrar o que fazer durante longas horas até as 11 e meia. No seqüestro, a partir de certo momento, ninguém mais tem o que dizer. Todo mundo fica em sua pequena barraca ou em silêncio. Alguns dormem, outros meditam, outros escutam rádio."

"Depois, banho geral. Então, vestir-se para o banho rapidamente e ir, em geral, a um pequeno rio. Tudo é limitado. Para mim era uma tortura lavar o cabelo, porque não me davam tempo. Eu estava com homens que não têm tantas coisas para lavar; eles ficavam prontos em 10 minutos e eu com 25 ainda estava tomando banho, e me tiravam aos gritos e era muito humilhante. Depois, ir para a barraca, vestir-se com muito cuidado para que a toalha não caísse enquanto se veste a roupa íntima, com muito cuidado para que não nos ataque um escorpião, ou qualquer bicho enquanto está se trocando. Todos fomos picados por algum bicho."

"Todos os dias alguém diz: 'Ai! Uma 'hallanave' acaba de me picar. E então outro diz: 'Bom, e onde estão?' 'Não tenho idéia, deve estar por aí.' Uma hallanave é uma formiga muito grande e a dor que produz sua picadura é como a de um escorpião. Há outras formigas pequenas que caem das árvores, e quando roçam a pele da gente urinam em cima e produzem uma queimadura forte." "Depois chega a comida. Temos de comer o que trazem muito rápido, lavar os dentes, limpar as botas, enfiar-se na barraca ou pelo menos organizar a lona, estender a rede e rapidamente cai a noite. E é preciso já estar na rede."

"As botas devem estar de um lado para que as recolham e as levem, porque têm medo de que fujamos (...) Nos colocam as correntes e então, se tivermos um guardião de mau humor, nos agarra e coloca a corrente tão apertada que não nos deixa dormir. (...) Mas é possível negociar. No final consegui negociar que pusessem a corrente no pé, porque não conseguia dormir. As correntes eram muito grossas, os cadeados eram muito grossos. Eu terminava com as clavículas peladas pelo roçar da corrente."

"E a gente dorme como um chumbo, tentando esquecer o pesadelo em que estamos, provavelmente tendo sonhado coisas como, por exemplo, estou com meus filhos correndo, e de repente a gente se levanta em um pesadelo, com a corrente no pescoço, com sede, com vontade de urinar. É preciso urinar na frente dos guardas. Vocês podem imaginar o que era para mim urinar na frente deles à noite, e nos colocam a lanterna porque há muita crueldade e muita maldade... bem, tudo o que não conto para vocês é porque são coisas muito minhas e é muito doloroso."

Essa rotina era rompida quando ouviam passar um helicóptero. "Temos de sair correndo e com essas bagagens que pesam, as coisas que passei... mas, meu Deus, que coisa espantosa! E essas marchas... O pior, o pior... as marchas. Uma marcha, levantada às 4 da manhã, empacotada com todo o equipamento, sem luz... Obviamente se vai vestir a roupa e está com formigas, e a roupa que pomos na marcha está molhada, úmida, ou melhor, absolutamente molhada às 4 da manhã, esse frio do amanhecer, porque a marcha é muito longa."

Em seu relato, Betancourt reconheceu que em alguns momentos sentiu vontade de matar. "Se eu pudesse, o teria feito. A morte é a companheira mais fiel do seqüestrado."

O cabo William Pérez, de 36 anos, que passou dez anos e quatro meses preso, relatou como no ano passado ajudou a salvar a vida de Ingrid: "Ela teve uma depressão muito forte que não a deixava comer. Começou a sofrer de úlcera, de infecção intestinal e se desidratou. A isso é preciso somar o efeito de ter uma corrente no pescoço 24 horas", contou Pérez. "Com paciência, quase à força, como se alimenta uma criança, eu lhe dava colherada após colherada: 'uma para a mamãe, outra para cada um de seus filhos'. Ingrid atirava a comida e chegou um momento em que dizia: 'quero morrer, quero morrer'. Quando disse isso já estava há duas semanas sem comer nada. Ela não tinha forças para subir uma elevação de um metro. Eu tinha de levantá-la, hidratá-la, lhe dar remédio para úlcera e quase obrigá-la a comer."

Pérez, que entrou no exército colombiano porque não conseguiu realizar seu sonho de estudar medicina, tentava animá-la falando de seus dois filhos, de sua mãe, da quantidade de gente que lutava por ela. Um jornalista da revista colombiana "Semana" lhe perguntou: "O que a guerrilha fazia quando Ingrid estava tão doente que não queria comer?" E Pérez respondeu: "Diziam: 'se não comer e morrer, abrimos um buraco e a enterramos'."

Matéria publicada no UOL Mídia Global.