sexta-feira, novembro 27, 2009

Imigrante com teto

Lucas Mendes, na BBC Brasil

Imigrante ilegal brasileiro tem dois grandes sonhos: casa própria no Brasil e ser legal nos Estados Unidos. Os jovens vivem na dúvida. Reclamam do trabalho duro, mas mandam dinheiro para o Brasil.

Os mais velhos que não falam inglês querem voltar. Não param de reclamar da vida nos Estados Unidos. Muitos voltam, com dinheiro, sem inglês, menos português e passam o resto da vida reclamando do Brasil.

As três babás que cuidaram dos meus filhos, todas já senhoras, caíram fora tão logo juntaram o suficiente para comprar o apartamento. Não paravam, nem param, de se queixar da vida. Ruim aqui que nem aí.

Trabalhavam muito e não gastavam nada. Vidas miseráveis, sempre com medo de que aquele dinheiro vivo acumulado no colchão fosse roubado. Odiavam ter contas em bancos e não confiavam em ninguém. Quem dorme bem em cima de US$ 10 ou 20 mil?

Se consolavam falando sobre amigas que trabalhavam em regime de semi-escravidão em casas de patrões ricos que confiscavam os passaportes, pagavam US$ 100 por semana e achavam que as empregadas deveriam estar agradecidas porque moravam em Nova York, tinham TVs, usavam cosméticos de madames e faziam poupança.

Na década de 90 surgiram vários escândalos e um deles, envolvendo um casal de milionários indianos, virou manchete. A empregada vivia presa no porão. Quando reclamava, apanhava. Um dia conseguiu escapar, o casal foi parar na prisão e vários outros casos de abusos foram expostos. Desde então, tem sido raros os escândalos, mas as máfias chinesas estão a todo vapor.

A China, cada vez mais rica, é também uma das grandes exportadoras de imigrantes ilegais. Chineses pagam até US$ 70 mil para entrar nos Estados Unidos, tornam-se escravos até que a dívida seja paga. Na Chinatown, em Manhattan, muitos têm apenas uma cama onde podem passar oito horas porque é dividida, sem mudar lençóis, com outros dois miseráveis nas 16 horas seguintes.

A recessão afetou os brasileiros e a área de construção foi a mais derrubada. Não há números de quantos voltaram, mas uma medida confiável é a quantidade de dólares remetidos para o Brasil. O número começou a crescer no ano 2000, chegou a US$ 7 bilhões em 2008, mas no último ano caiu quase 5%. Não é um número brutal. Tragédia maior é dos mexicanos, que mandavam US$ 23 bilhões por ano. O New York Times agora publica matérias com mães mexicanas que mandam dinheiro para os filhos nos Estados Unidos.

Para os que mandam dinheiro para sustentar família ou fazer poupança, o pior foi a desvalorização do dólar. Quando Marcélio chegou aqui em 2005, o dólar estava a três por um. Hoje está por volta de 1,70. Ele trabalha em construção de casas em Nova Jérsei e diz que hoje trabalha 70% menos do que há três anos. Começou a sentir a bolha imobiliária em 2006.

No inverno, trabalha dois dias por semana, só dá para pagar o essencial, mas Marcélio este mês é pioneiro num programa criado pela Caixa Econômica Federal, que viu uma oportunidade de ajudar e ganhar às custas do imigrante.

No ano passado, criou o Crédito Imobiliário para Emigrantes. O esquema é simples e bem bolado. O imigrante abre uma conta de poupança na Caixa - pessoalmente ou por procuração - e se compromete a fazer remessas de um valor fixo por 12 meses. Se faltar um mês, precisa recomeçar da estaca zero. Quando completa um ano, escolhe a casa e a Caixa financia 60% em 180 meses por 11,90% ao ano. Quem quiser, pode fazer remessas menores ou maiores.

Marcelio é de Poços de Caldas e escolheu uma casa de R$ 120 mil. Seu pagamento mensal, dependendo do câmbio, está por volta de US$ 700 por mês.

A poupança é calculada em reais e o pagamento dele fica na faixa de US$ 1.200 por mês. A casa tem 180 metros quadrados num bairro bom da cidade. Com o esquema da Caixa, ele diz que planeja voltar daqui a três anos. Se tivesse de fazer sua própria poupança, calcula que teria de malhar pelo menos mais oito anos ralando na construção em Nova Jérsei. Soube do plano pelos jornais locais. Vai voltar para construir em Poços.

Construção é trabalho gratificante pelos dólares. Na década de 80, fiz uma reportagem sobre um brasileiro que ficou rico com pouco mais de 40 anos. Vivia num casão. Tinha cara de 70. Trabalhava em construção de estradas, casas e piscinas. Não gastava nada, nem permitia que as duas filhas fossem à escola porque iam descobrir droga e sexo. Eram primitivos.

A Caixa não resolve este tipo de problema. Nem o da legalização dos papéis - green card e cidadania - mas realiza o sonho da casa própria.

segunda-feira, novembro 02, 2009

Almas gêmeas cinematográficas

Mark Harris no New York Times

Sentada numa suíte de hotel no East Side no começo de outubro, de frente para o diretor e escritor Pedro Almodóvar, Penélope Cruz pegou uma revista grande com papel brilhante e olhou com admiração para a foto de Uma Thurman na capa. "Ficou bom", diz ela, mostrando-a para Almodóvar, com os olhos buscando sua aprovação.

Ele se inclina para olhar, observando com entusiasmo a pose de Thurman e seus cabelos loiros curtos. "Sim, sim", diz ele para Cruz, acelerando do inglês para o espanhol enquanto sua mente começava a percorrer trechos de celulóide. "As atrizes, quando chegam perto dos 40, cortam seus cabelos. Isso sempre as faz parecer mais jovens. Lembra-se de Sharon Stone? Como ela cortou o cabelo quando tinha uns 40, 42? Ficou bom!"

Por um momento, ele parecia fascinado pela capa, à medida que a imagem de Thruman entrava em sua mente, para ser colada e indexada entre milhares de outros retratos mentais de atrizes. "É verdade", disse ele, rindo. "Sou verdadeiramente fascinado por atrizes, por tudo o que elas fazem, até pelo camarim, que é o sanctum sanctorum de qualquer atriz. E sou especialmente fascinado por atrizes que interpretam atrizes."

O que é exatamente o que Cruz faz em "Abraços Partidos", a quarta colaboração entre ela e Almodóvar - e, segundo ela, a mais difícil. No filme, que fechou o Festival de Cinema de Nova York neste outono e estréia nos cinemas em 20 de novembro, ela interpreta Lena, amante de um homem rico, que tem a chance de realizar, por um breve momento, seu sonho há muito acalentado de se tornar uma estrela de cinema ao se envolver romanticamente com um diretor (Lluis Homar).

Lena, uma figura angustiante sem uma identidade formada e muito ansiosa para se tornar outra pessoa (no começo do filme, ela é vestida e penteada como Audrey Hepburn), é "talvez o personagem mais triste que eu já escrevi", diz Almodóvar. "Ela tem um passado do qual não gosta nada, e quando descobre que pode representar outra pessoa, é como se ganhasse uma nova vida. Ela é dura - um anjo caído. E este é o maior desafio que eu já dei a Penélope até agora."

Os filmes de Almodóvar com Penélope Cruz frequentemente encontravam um ponto de doçura em que os cenários ornamentados do melodrama eventualmente caíam por terra para revelar emoções e motivos mais profundos e complexos. Eles também ofereceram a Cruz algumas das oportunidades mais enriquecedoras. No thriller de 1997 "Carne Trêmula", ela domina os primeiros dez minutos interpretando uma prostituta pobre na Madri dos anos 70 que dá a luz num ônibus urbano. Dois anos depois, quando ele recrutava atores para o filme "Tudo Sobre Minha Mãe", que ganharia o Oscar por melhor filme em língua estrangeira, Almodóvar a chamou novamente, desta vez para interpretar uma freira. Embora tivesse um caso com um travesti e contraísse o vírus da Aids, ela continuava sendo a presença mais doce e pura do filme. "Fiquei surpresa quando ele me disse qual era o papel", lembra-se. "Mas pensei, 'Só Pedro pode tornar isso real, porque ele não julga nenhum desses personagens'."

E no drama "Volver" de 2006, Cruz ganhou sua primeira nomeação para o Oscar por interpretar uma viúva determinada que era um amálgama das mulheres da infância de Almodóvar em La Mancha, mesmo com uma pitada de Sophia Loren para colocá-la em meio a narrativa da história do cinema que é tecida ao longo de todo o seu trabalho.

"Alguém me perguntou: 'Ela é sua musa?'", disse Almodóvar, cujas colaborações de longa duração com atrizes, começando com Carmen Maura durante os anos 80, foram notoriamente frutíferas e às vezes tão voláteis quanto. "Bem, sim. Ela é uma musa para mim no sentido de que uma musa é alguém que o torna melhor do que você é. Acho que sou um diretor melhor com ela, porque ela acredita que eu sou melhor do que eu sou, e essa fé cega me dá muita força."

"Não, não", responde Cruz, balançando a cabeça e sorrindo calmamente. "Eu sei exatamente o quanto você é bom."

A química que Almodóvar, 60, e Cruz, 35, compartilham pareceria quase romântica se ele não fosse um dos diretores mais assumidamente gays do mundo e ela não estivesse ligada ao ator Javier Bardem segundo os tablóides. (Questionada se o casamento está nos planos, ela disse, com um sorriso agradável e olhos frios como aço: "Você escreve para o The New York Times, não é? Acho que você não deveria fazer esse tipo de pergunta.") A relação fácil e afetuosa entre eles se desenvolveu durante metade de vida de Cruz - ela tinha 17 anos quando encontrou o diretor pela primeira vez, que a rejeitou para o papel de uma mulher de 35 anos em sua comédia "Kika" de 1993, mas disse que a chamaria dentro de alguns anos.

Em seus três primeiros filmes, ela mergulhou nas ondas emocionais de cada novo papel - "Nos filmes de Pedro, ou eu estava morrendo ou tendo filhos", disse - e a afinidade entre os dois cresceu. Quando ela ganhou o prêmio por melhor atriz coadjuvante pelo filme "Vicky Cristina Barcelona" de Woody Allen no ano passado, ela agradeceu efusivamente a Almodóvar. E embora pretenda experimentar a direção um dia - "Talvez daqui a dez anos", sugeriu; "Acho que mais cedo", ele respondeu -, ela disse que só faria isso com a bênção de Almodóvar. "Você leva jeito!", disse ele.

Se "Abraços Partidos" não desgastou a ligação entre os dois, ainda assim foi exigente. "Este foi o filme em que eu mais chorei entre as tomadas", disse Cruz. "A energia desse personagem e sua forma de se expressar é muito diferente da minha. Sou muito mais como a personagem que interpretei em 'Volver'. Ela era sólida, forte, como as mulheres com as quais eu cresci. Mas para esse personagem, Pedro queria sempre o que quer que fosse que eu estava sentindo logo antes ou logo depois do choro - foi nesses momentos que eu a encontrei."

Almodóvar teve prazer mesmo nos dias mais difíceis de filmagem. "Todas as dificuldades que as atrizes têm no momento em que estão atuando de fato me interessam", disse ele. "Nesse momento, o diretor é como o marido, o amante, o amigo, a mãe, o pai, o psiquiatra. Mas também há um ponto em que o diretor tem de ser terrivelmente cruel, porque as atrizes às vezes têm de enfrentar seus próprios demônios. E então, o diretor tem de ser o carrasco. Carrasco - é essa a palavra certa?" Ele olha para Cruz à espera de confirmação e ela sorri. "Não sei por que estou dizendo essas coisas em frente de Penélope! Porque esse não é o nosso caso."

"É verdade!" diz ela. "Minhas lágrimas foram por causa das frustrações dessa mulher que eu estava interpretando, não por causa dele."

Se quase todos os trabalhos de Almodóvar são, num nível subtextual, filmes sobre filmes, "Abraços Partidos" leva isso mais adiante ao tomar o mundo do cinema explicitamente como tema. O personagem de Cruz oferece coração e pathos, mas o motor da narrativa reside na história de um diretor lutando contra o pesar, a depressão e a fraqueza física para terminar um filme que estava incompleto há 15 anos - uma comédia que se esforça para emergir de uma tragédia. "No começo eu não estava consciente, mas no final percebi que esta é a minha carta de amor para o cinema", disse Almodóvar.

Para uma carta de amor, é notavelmente triste. De fato, os vislumbres que temos do filme dentro do filme, uma brincadeira barulhenta e de cores brilhantes chamada "Chicas y Maletas" ("Garotas e Malas") que pretende evocar o sucesso internacional do diretor em 1888 com "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos", só serve como lembrete alarmante de quanto os seus filmes se tornaram mais melancólicos. "Este é certamente o filme mais austero que eu já fiz", disse. "E talvez desaponte pessoas que esperam de mim um tipo mais extravagante de direção. Acho que é verdade, meus filmes são mais tristes agora, e ainda assim uma coisa que esse filme diz é que a vida não é perfeita, mas o cinema pode a tornar um pouco menos imperfeita."

Quando a The New York Times Magazine entrevistou Almodóvar há dez anos, o repórter observou que "de fato ele se esforça para parecer mais novo do que sua idade verdadeira: às vezes ele se veste como adolescente" e tinge seu cabelo de castanho. Hoje, o cabelo de Almodóvar está grisalho (embora tenha uma quantidade impressionante) e suas roupas são mais discretas. Sim, ele tem algumas rugas, mas tédio, fraqueza e resignação ainda não parecem ter encontrado um lugar para se instalar em seu rosto.

Nem a qualidade tristonha do seu último trabalho está refletida em seu comportamento exuberante. Ele insiste que há otimismo mesmo em "Abraços Partidos", e enquanto fazia o filme, gostou tanto de revisitar "Mulheres à Beira" que fez algumas cenas extras para "Chicas y Maletas" ("algo bem sujo e ultrajante, como os filmes que eu fazia no começo dos anos 80", disse ele) para acrescentar ao DVD. Ele também está atuando como consultor de uma versão para o palco de "Mulheres à Beira", que será dirigida por Bartlett Sher (vencedor do Tony em 2008 por "South Pacific") e escrita por David Yazbek ("The Full Monty" na Broadway) e Jeffery Lane. Uma adaptação não musical para o palco de "Tudo Sobre Minha Mãe", na qual Diana Rigg estrelou em Londres, também pode ir para Nova York.

Eventualmente, Almodóvar começará a trabalhar num novo roteiro; ele normalmente escreve oito ou dez esboços e começa a escolher as atrizes por volta do terceiro. Ele vem dirigindo filmes a cada dois ou três anos e até agora está cumprindo a promessa que seu alter ego cinematográfico fez em "Abraços Partidos": nada de sequências, refilmagens ou filmes biográficos.

A última categoria é tentadora, especialmente quando Almodóvar fala em detalhes sobre a vida do filho transsexual de Ernest Hemingway, Gregory (que depois se tornou Glória). Touradas! Mudança de gênero! Imagine o figurino! Ele não é, no mínimo, intrigante? "Nada de filmes biográficos!", disse ele firmemente. "Nada de biografias, sequências, filmes de herói, filmes de anti-herói, e definitivamente nenhum filme de super-herói. Todo o resto eu posso fazer."

Publicado no UOL Internacional.