sábado, janeiro 17, 2009

Bush: perdoar e esquecer?

Paul Krugman, no The New York Times

No domingo passado, foi perguntado ao presidente eleito Barack Obama se ele pediria uma investigação dos possíveis crimes cometidos pelo governo Bush. "Eu não acredito que ninguém esteja acima da lei", ele respondeu, mas "precisamos olhar para a frente em vez de olhar para trás".

Sinto muito, mas se não fizermos uma sindicância sobre o que aconteceu durante os anos Bush - e quase todo mundo entendeu os comentários de Obama como significando que não faremos - isso significa que aqueles que detêm o poder realmente estão acima da lei porque não enfrentarão qualquer conseqüência caso abusem de seu poder.

Vamos deixar claro sobre o que estamos falando aqui. Não se trata apenas de tortura e grampos ilegais, cujos perpetradores alegam, por mais implausível que seja, que eram patriotas agindo no interesse da segurança da nação. O fato é que os abusos do governo Bush se estendem da política ambiental aos direitos de voto. E a maioria dos abusos envolveu o uso do poder do governo para recompensar políticos amigos e punir políticos inimigos.

O processo de contratação no Judiciário era semelhante ao processo de contratação durante a ocupação do Iraque - uma ocupação cujo sucesso supostamente era essencial para a segurança nacional - no qual os candidatos eram julgados segundo sua posição política, sua lealdade pessoal ao presidente Bush e, segundo alguns relatos, sobre sua posição na questão do aborto, em vez de sua capacidade de realizar seu trabalho.

Falando sobre o Iraque, não vamos esquecer que o país fracassou na reconstrução: o governo Bush entregou bilhões de dólares em contratos sem licitação para empresas com conexões políticas, empresas que não cumpriram o contrato. E por que deveriam se preocupar em fazer seu trabalho? Qualquer funcionário do governo que tentasse auditar, digamos, a Halliburton, rapidamente via sua carreira descarrilar.

Há muito, muito mais. Segundo minha contagem, pelo menos seis importantes agências do governo passaram por grandes escândalos nos últimos oito anos - na maioria dos casos, escândalos que nunca foram apropriadamente investigados. E há o maior escândalo de todos: alguma pessoa seriamente duvida que o governo Bush enganou deliberadamente a nação para invadir o Iraque?

Por que, então, não devemos ter uma investigação oficial dos abusos durante os anos Bush?

Uma resposta que você ouvirá é que buscar a verdade causaria divisão, que exacerbaria o partidarismo. Mas se o partidarismo é tão terrível, não deveria haver alguma pena para a politização pelo governo Bush de cada aspecto do governo?

Por outro lado, nos dizem que não devemos nos concentrar nos abusos do passado, porque não os repetiremos. Mas nenhuma figura importante do governo Bush, ou entre os aliados políticos do governo, expressou remorso por infringir a lei. Quem garante que eles ou seus herdeiros políticos não farão o mesmo de novo, caso tenham a chance?

Na verdade, nós já vimos esse filme. Durante os anos Reagan, os conspiradores do caso Irã-Contras violaram a Constituição em nome da segurança nacional. Mas o primeiro presidente Bush perdoou a maioria dos malfeitores, e quando a Casa Branca finalmente mudou de mãos, o establishment político e a mídia deram a Bill Clinton o mesmo conselho que estão dando a Obama: deixe os escândalos de lado. Então o segundo governo Bush retomou exatamente de onde os conspiradores do Irã-Contras pararam - o que não causa surpresa quando você tem em mente que Bush de fato contratou alguns desses conspiradores.

Mas é verdade que uma investigação séria dos abusos da era Bush tornariam Washington um local desconfortável, tanto para aqueles que abusaram do poder quanto para aqueles que lhes possibilitaram ou defenderam. E estas pessoas têm muitos amigos. Mas o preço de proteger o conforto delas seria alto: se ignorarmos os abusos dos últimos oito anos, nós garantiremos que eles acontecerão de novo.

Enquanto isso, a respeito de Obama: apesar de provavelmente ser de seu interesse político a curto prazo perdoar e esquecer, na próxima semana ele jurará "preservar, proteger e defender a Constituição dos Estados Unidos". Este não é um juramento condicional para ser honrado apenas quando for conveniente.

E para proteger e defender a Constituição, um presidente deve fazer mais do que obedecer a própria Constituição; ele deve fazer com que aqueles que violam a Constituição respondam por isso. Então Obama deve reconsiderar sua aparente decisão de deixar o governo anterior escapar impune de seus crimes. Conseqüências a parte, esta não é uma decisão que ele tem o direito de tomar.

Publicado no UOL Mídia Global.

sábado, janeiro 10, 2009

Um Paul McCartney político

Jonathan Power, na Prospect Magazine

Eu fui colega de escola de Paul McCartney em Liverpool, 50 anos atrás, e, desde então, continuamos amigos, embora distantes. Eu ingressei na escola alguns meses após a maioria dos garotos da minha turma. Alan Durband, o nosso professor, pediu a Paul que fizesse com que eu me sentisse confortável na escola. E foi exatamente isso o que ele fez. Foi um ato de cordialidade do qual eu me lembraria muito tempo mais tarde. Sei muito bem como garotos podem ser desagradáveis.

Atualmente, tendo sido um jornalista político durante a maior parte da minha vida, eu quis conversar com Paul sobre, entre outras coisas, os grandes acontecimentos políticos ocorridos durante as nossas vidas. O meu desejo foi manter uma conversa informal, como a de dois velhos sentados em um banco, recordando a época da escola e outras coisas que aconteceram desde então.

Pergunta: Quando nós nos conhecemos na escola, lembro-me de ter feito um discurso acalorado na sociedade de debates, e alguém se levantou logo depois e disse: "Acabei de ver o meu primeiro jovem furioso". Quais são as suas memórias políticas daquela época?

Resposta: As minhas memórias seriam mais musicais, tendo mais a ver com a transmissão mensagens através da música. Lembro-me do fim do ano letivo, quando trouxe o meu violão, o único dia em que tive permissão para isso - e fiquei de pé na mesa do professor de história Cliff Edge, um professor especialmente agradável, cantando "Long Tall Sally". Lembro-me ainda de que George (Harrison) também trouxe o violão. A reação de todos os garotos foi: "Uau! Que legal!". Creio que aquilo causou uma boa impressão e me fez pensar que, sim, eu deveria fazer mais.

P.: Lembro-me daquele dia! Mas nós estávamos também em uma escola bastante acadêmica, e cursávamos o programa rápido para os estágios superiores, quatro anos, ao contrário dos demais. Sofríamos pressão para entrar na universidade. Quando foi que você decidiu romper com aquilo?

R.: É engraçado. Uma das coisas que adoro quanto à vida é o fato de ela simplesmente assumir o controle sobre nós. Você pode fazer grandes projetos, mas o destino sempre entra na história. No meu caso, gosto da forma como os erros transformam-se às vezes no oposto. Assim, recordo-me de que certa vez estava na sala de aula no horário do almoço, vendo todos os caras da minha turma fazendo uma certa tarefa. Perguntei a eles: "O que vocês estão fazendo?". Eles responderam: "Escrevendo para universidades". Eu não tinha a menor idéia de que aquilo era necessário. Ninguém me tinha dito. A minha mãe e o meu pai não sabiam. O meu pai era vendedor de algodão.

P.: No filme "Across the Universe", de 2007, a diretora cria uma história de amor em torno da música dos Beatles e, assim como algumas outras pessoas, ela parece estar dizendo que você, de alguma forma, assimilou este sentimento da década de 1960 - afinal, você concluiu o curso em 1960 -, e o transmitiu como ninguém mais foi capaz de transmiti-lo. Você acredita que isso seja verdade?

R.: Talvez. Mas o legal quanto a isso é o fato de a gente não fazer tal coisa conscientemente. A gente meio que esbarra nas coisas. Por exemplo, o Vietnã. No momento em que começávamos a ser muito conhecidos, alguém me disse: "Bertrand Russel está morando perto daqui, em Chelsea. Por que você não vai visitá-lo?". Assim, eu peguei um táxi até lá e bati na porta. Havia um norte-americano que o ajudava. Ele veio até a porta e eu disse: "Eu gostaria de conhecer o senhor Russel, se for possível". Esperei um pouco e, a seguir, conheci aquele grande homem. E ele era fabuloso. Ele me falou sobre a Guerra do Vietnã - a maioria de nós não sabia nada a respeito, o assunto ainda não estava nos jornais -, e disse como aquela guerra era ruim. Passamos a investigar o tema, e colegas norte-americanos que visitavam Londres nos falavam sobre o recrutamento forçado. A seguir, fomos aos Estados Unidos, e lembro-me de que o nosso agente de publicidade - um cara gordo, que gostava de charutos - disse: "Não importa o que vocês façam, não falem sobre o Vietnã". É claro que aquele era o conselho errado para nos dar. Não se diz a jovens rebeldes que não façam determinada coisa. Assim, é claro que falamos sobre o assunto o tempo todo, e dissemos que era uma guerra péssima. Obviamente, apoiamos o movimento pela paz.

P.: Você foi um megafone para uma geração.

R.: As pessoas me dizem frequentemente: "Você acha que a música modifica o mundo?". Eu acho que sim. Ela modifica o mundo em vários níveis. E um desses níveis vincula-se simplesmente ao fato de os músicos famosos serem ouvidos.

P.: Por detrás da imagem de jovens rebeldes e impetuosos havia um senso de responsabilidade crescente?

R.: Sim. Nós nos víamos simplesmente como jovens sensíveis. Não achávamos que fôssemos particularmente impetuosos. Havia milhões de pessoas, e éramos parte de um movimento. Estávamos longe de ser os piores. Éramos bastante inocentes. Talvez, em termos de responsabilidade, nós tenhamos plantado sementes para pessoas que vieram mais tarde. Pessoas como (Bob) Geldof, Bono. Indivíduos que atualmente estão com o megafone.

P.: Você contribuiu para o progresso social?

R. : De uma forma inocente, quase que involuntária, creio que fizemos uma contribuição. Acho que existe uma certa liberdade inerente à toda a história dos Beatles. Atualmente, em qualquer lugar do mundo, e especialmente nos Estados Unidos, as pessoas vêm até mim e me dizem: "Você mudou a minha vida". E eu acho que sei o que elas querem dizer. Quando fomos lá a primeira vez, os Estados Unidos dizia respeito a calções de futebol americano e cortes de cabelo curtinhos. Acredito que hoje em dia haja muito menos disso.

P.: Voltando à década de 1960, devemos nos lembrar de como o clima cultural era sufocante. Eu acabei de ler um livro sobre Rudolf Nureyev, que conta como ele dançou com Margot Fonteyn no Covent Garden, e no intervalo foi ao banheiro público masculino. Nureyev encontrou um cara lá, transou com ele e estava voltando apressadamente quando a polícia o prendeu.

R.: Brian Epstein, o nosso agente, era gay. Ou "queer", conforme ele seria chamado na época, de forma não pejorativa. Nós sabíamos disso, porque falávamos com ele a respeito - ele era uma pessoa legal para nós. Sabíamos que se fosse pego, ele iria para a cadeia. E, mais uma vez, isto nos fez questionar: "Por que?". Se a pessoa quiser agir daquela forma, mesmo reservadamente, o que isso tem a ver com qualquer outra pessoa?

P.: Se a minha memória não está me traindo, naquela época você jamais defendeu o direito à homossexualidade.

R.: Isso nunca me ocorreu. Ninguém nunca me disse: "O que você pensa a respeito dos direitos dos gays?". Acho que se alguém tivesse me perguntado, eu teria dito que era uma boa idéia.

P.: A sua geração deixará o mundo melhor do que o encontrou?

R.: Não sei nada quanto a isso. O que eu sei é que os nossos costumes e hábitos precisam de algumas restrições bastante severas para salvar o meio ambiente. A industrialização na Índia e na China está criando muitos problemas. Certa vez me encontrei com o ministro do Meio Ambiente da Índia e ele me disse: "Estamos prestes a entrar no buraco do qual vocês estão começando a sair". Mas sinto que, espiritualmente, estamos caminhando para um outro lugar. Por meio da comunicação de massa, através da Internet e outros meios, acho que a idéia de que as pessoas são as mesmas em todos os lugares está começando a tomar conta da nossa consciência e isso me torna otimista. Mas isso não garante um futuro benigno. Acredito que teremos pela frente ou um futuro "Blade Runner" no qual tudo dá horrivelmente errado, ou um futuro iluminado, no qual a Organização das Nações Unidas (ONU) tornar-se-á mais importante e as pessoas e as nações perceberão que a maioria dos seres humanos consiste de animais bastante similares, e que podemos resolver os problemas.

Você sabia que eu acabei de fazer um show em Israel? Me advertiram quanto a ir lá, e me aconselharam a não entrar nos territórios palestinos. Mas eu me liguei a uma organização chamada One Voice (Uma Voz), que é meio palestina, meio israelense. Eles trabalham pela paz, ainda esperando uma solução baseada em dois Estados. Eles acreditam que isso não está muito distante, que os políticos apenas sentem dificuldade em assinar um acordo. Conheci alguns deles em Tel Aviv. Não tinha percebido o quanto o Estado de Israel é intrusivo. Se alguém quiser fazer algo como importar um carro nos territórios palestinos, é necessário obter uma permissão de Israel. E um palestino que trabalha em Israel precisa entrar em uma fila às três horas da manhã para começar a trabalhar às oito. É hora de batermos de frente contra isso conforme conseguimos aparentemente fazer na Irlanda.

P.: Você acredita que isso acontecerá nos próximos anos?

R.: Eu fui sem dúvida inspirado pelas pessoas do One Voice. Fui visitar uma escola de música em Belém. Eu precisava ir à Palestina se quisesse lidar com Israel com a consciência limpa. Todos na banda usavam as tarjas do One Voice. Creio que os jovens dos dois lados chegarão lá.

P.: E quanto a esta enorme crise financeira? Será que os Estados Unidos foram vítimas da própria ganância?

R.: Creio que há certa verdade nisso. É por isso que muitos de nós esperam uma mudança na política dos Estados Unidos com a eleição de Obama. Ele é o homem para a tarefa. Fiquei bastante impressionado com a decisão dele de trabalhar na zona sul de Chicago após se formar, em vez de obter um emprego lucrativo em Wall Street. Estou muito feliz por ele ter vencido. Acho que ele será um grande presidente.

P.: Existe uma boa possibilidade de que daqui a 500 anos a sua música seja cantada e tocada. Isso o impressiona?

R.: Sim. Me dá uma sensação incrível. Até mesmo quando acontece agora. Se estou em Nova York, conforme aconteceu recentemente, um motorista negro põe a cabeça para fora do caminhão e diz: "Ei, Paul. Let it be!". Isso me deixa extasiado. Quando éramos garotos, quem teria imaginado, na poeirenta sala de aula do professor Alan Durband, que estaríamos aqui? Que eu estaria sentado no meu próprio escritório em Londres...

P.: Como é que você poderia imaginar que teria uma vida tão rica, que eu estaria sentado aqui com o maior astro pop do mundo, o cara com quem eu joguei críquete no pátio da escola?

R.: Os norte-americanos diriam "awesome" ("extraordinário"). Deixe-me contar uma pequena história para terminar. Recentemente, em um feriado, eu estava em Long Island, onde tenho um pequeno veleiro e uma senhora muito gentil permite que eu o deixe atracado na praia dela. Eu simplesmente velejo de maneira bem silenciosa no meu próprio barco. Eu, o vento e a a vela. É um grande equilíbrio para a minha vida de alta visibilidade. Quando eu preparava o barco, havia um grupo de caras na praia, e eu os ouvi cantando. Era uma praia bem quieta; não havia ninguém, exceto eu e eles. Eu simplesmente estava curtindo o local com a minha namorada. Eu escutei, e a música era tão afinada que eu me aproximei. Ao chegar mais perto, percebi que eles cantavam a minha música "Eleanor Rigby". Fiquei simplesmente parado lá, ouvindo, até eles terminarem, e foi muito legal. Um arranjo lindo. Descobri depois que eles eram o clube de canto Princeton Glee. E, quando terminaram, eu os aplaudi e disse: "Você conseguem me imaginar como um garoto em Liverpool, e alguém me dizendo que eu me depararia com um grupo coral jovem cantando uma das minhas canções em uma praia em Long Island, nos Estados Unidos? Isso é fantástico".

P.: Lembro-me de que você me disse certa vez que "Eleanor Rigby" foi influenciada por Alan Durband.

R.: Sim, de uma forma indireta. Foi por meio da paixão que ele injetou em nós por coisas improváveis, como Chaucer. Para um garoto de Liverpool de 16 ou 17 anos, não é fácil romper tal barreira e acessar Chaucer. E a paixão que ele injetou em nós encontrou sem dúvida um caminho rumo às minhas músicas. Creio que algo como "Eleanor Rigby" tem uma dívida para com Durband porque eu vi a estrutura, enxerguei as palavras colocadas em uma bela ordem. Ele teve aulas com F.R. Leavis, em Cambridge. Eu nunca tinha ouvido falar de Leavis, mas lembro-me de que havia uma poema de Housman que apreciávamos, mas Durband insistiu que tratava-se de "lixo velho e sentimental". Ele disse que a sua posição devia-se à influência de Leavis. Portanto, eis-me aqui falando sobre esta linhagem Leavis-Durband.

P.: Você algum dia contou a ele a história do pedigree de "Eleanor Rigby"?

R.: Não, mas não sei se naquela época eu sabia disso. É o tipo de coisa que você só percebe quando olha para trás.

Publicado no UOL Mídia Global.