segunda-feira, setembro 26, 2005

Rolling Stones resistem à passagem do tempo

Jon Pareles, do New York Times

Algumas vezes os clichês são subestimados. Mas os Rolling Stones adotaram integralmente a repetição em "A Bigger Bang" (gravadora Virgin), o primeiro álbum com novas músicas da banda a ser lançado desde 1997. E ao que parece, foi uma boa opção.

As músicas são de um conjunto Rolling Stones simples: duas guitarras, baixo, bateria, acompanhamentos de piano e o vocal de Mick Jagger, transatlântico e pendendo para os blues. Não há metais, e os cantores de apoio e os sintetizadores estão ausentes. Quase todas as 16 músicas falam de problemas relativos a mulheres, com títulos tão genéricos como "Let Me Down Slow", "Rain Fall Down", e "Dangerous Beauty". O ouvinte deve assimilar esses títulos segundo os seus significados literais: os Stones decidiram que só precisam do básico. Um refrão, um ditado popular, uma pitada de melodia e um comportamento. Eis, assim, uma música dos Stones.

Basta ouvir "Oh No, Not You Again". Ela começa com a bateria de Charlie Watts na batida "four 16th" que ele usou como base para incontáveis músicas da banda. Dois acordes oscilam entre guitarras rítmicas, e a seguir os acordes "stop-time" (ritmo descontínuo, em que se toca, apenas, o primeiro de dois compassos) retumbam, enquanto Jagger tenta reavivar uma velha chama: "Once bitten, twice shy" (algo como, "uma vez mordido, duas vezes cauteloso"), diz o vocalista subitamente, usando um clichê descarado. Quando as guitarras fazem um coro de três acordes e Richard toca a sua 10.000º versão de um ritmo de Chuck Berry, percebe-se que o resultado é inevitável: os velhos truques ainda funcionam.

Ou, funcionam, pelo menos, para uma banda. Antigamente os Stones eram o modelo que a metade dos roqueiros do universo queria seguir. Agora, no mundo do Jay-Z e do Green Day, eles são uma anomalia, recusando-se a mergulhar na aposentadoria. Eles tocam o seu antigo e artesanal rock de raízes, como se estivessem colocando em funcionamento um Ford Mustang conversível em perfeito estado de conservação. A garotada provavelmente não liga - eles têm os seus skates ou Hummers -, mas é surpreendente que tal veículo ainda consiga pegar a estrada.

"A Bigger Bang" acompanha uma turnê que teve início em agosto em Fenway Park, em Boston, e que chega ao Madison Square Garden, em Nova York, em 13 de setembro, e ao Giant Stadium dois dias depois. A banda sabe que poucas (se é que há alguém) das pessoas que pagam até US$ 450 pelos ingressos estão ansiosas por ouvirem novas músicas. Quando os Stones fizeram a sua última turnê, em 2002 e 2003, eles só contavam com uma coletânea de grandes sucessos antigos para mostrar no palco. Mas com a teimosia irredutível quanto à rotina do grupo - Jagger, 62, correndo pelos palcos e fazendo os seus rebolados e sacudidas de ombros, e apontando o dedo furiosamente, e os baby boomers (membros da geração norte-americana nascida entre 1946 e 1964) na platéia ansiando por reconquistar a juventude como o luxo supremo da idade - é possível que, para a banda, apresentar um novo álbum seja também motivo de orgulho.

"A Bigger Bang" conta com pouca concorrência para reinar como o melhor álbum dos Stones em duas décadas. Embora a banda tenha se transformado em uma máquina de turnês milionárias, ela não abriu mão dos lucros com os álbuns - desde "Dirty Work", em 1986 - que incluem uma música para o rádio, um pouco de Keith Richards e um punhado de propaganda. Os Stones tentaram se modernizar e pensar grande com o superproduzido e mal preparado "Bridges to Babylon", em 1997. Antes disso, tentaram simplificar com "Voodoo Lounge" (1994), e "Steel Wheels" (1989), respectivamente. Mas em "A Bigger Bang", os Stones realmente parecem estar se divertindo juntos, tocando ao vivo em um estúdio qualquer.

Isso é, em parte, uma ilusão. "Oh No, Not You Again", que soa como uma gravação simples das investidas e contra-investidas das guitarras dos Stones no palco, não traz Ronnie Wood dividindo a guitarra principal e rítmica. O crédito pelas guitarras fica com Jagger e Richards (que também toca o baixo), e o instrumento soa basicamente como as interpretações deste último.

O talento dos Stones para o rock, juntamente com a sua coletânea musical, tem se constituído na forma como a banda definiu informalidade como perfeição. Embora a parte rítmica (que geralmente inclui Darryl Jones no baixo) seja impecável, tudo o mais parece ser improvisado. A montagem de tudo isso por meio de edição não parece ter sido um trabalho tão casual quanto se quer dar a entender.

Os ocasionais arroubos ambiciosos em "A Bigger Bang" ocorrem na música mais simples e de estilo mais tradicional. Em "Sweet Neo Com", Jagger alterna blues na gaita e insatisfação com a retórica do governo Bush - "It's liberty for all, democracy's our style/ Unless you are against us, then it's prison without trial" ("Isto é liberdade para todos, a democracia ao nosso estilo/A menos que você esteja contra nós, neste caso é a prisão sem julgamento"). E "Back of My Hand" alerta para o "trouble a-comin" ("problemas por vir"), em um eco do Delta blues, com Jagger na guitarra de apoio.

Mas a maior parte de "A Bigger Bang" parece ser algo montado como se fosse um desafio: quantas músicas Jagger e Richards seriam capazes de criar a partir de uma coletânea de refrões semifamiliares e de títulos conhecidos? Mais do que o suficiente. "Rough Justice", ecoando "Brown Sugar", dá o tom com o estilo da guitarra pendendo para um jazz algo vulgar. "Let Me Down Slow", equivalente a "Happy", conta com uma melodia de coro de uma eficiência inteligente - uma escala descendente enquanto Jagger canta "Let me down real slow" - e uma confusão de acordes de guitarra. "She Saw Me Coming" unifica refrão, título e vocal em uma salada de blues, e conta com algum humor essencial: "What a cast of characters/Her lovers and my friends" ("Que elenco de personagens/Os seus amantes e os meus amigos").

Duas outras músicas notáveis do álbum, "Streets of Love" ("Angie" atualizada) e "Biggest Mistake", que cai para o country, contam com letras de qualidade, deliberadamente escolhidas. E "Driving Too Fast" parece ser uma outra variação de "Brown Sugar", que ficaria muito bem no equipamento de som da residência ou do automóvel.

Os Stones sabem qual será o destino de "A Bigger Bang". Assim como ocorreu com os outros álbuns mais recentes dos Stones, a maioria das músicas será esquecida quando a turnê acabar, e no longo prazo até mesmo as melhores serão incapazes de competir com "Gimme Shelter", "Tumbling Dice", "Honky Tonk Women", "No expectations", "Jumpin' Jack Flash", "The Last Time" e dezenas de outras glórias passadas.

"A Bigger Bang" diz respeito a prazeres mais simples e imediatos: um som agudo, uma batida, um gemido, uma risada. Tais prazeres são suficientes para manter uma grande banda em movimento.

Publicado no UOL Notícias, em 05/09/2005.

domingo, setembro 25, 2005

Paulo Coelho diz que leitores não são burros

Alan Riding, do New York Times, em St. Martin (França)

Soltando um grito de prazer, Paulo Coelho chamou o visitante para ler uma mensagem eletrônica anunciando que as vendas em francês de seu mais recente romance tinham excedido 320 mil exemplares, desde sua publicação em maio. O romancista brasileiro já vendeu cerca de 65 milhões de exemplares em 59 idiomas.

"Ganhei o dia", disse ele. "Eu esperava que ultrapassassem 300 mil."

Bem, por que não? Todo autor quer que seus livros vendam bem. Mesmo assim, de alguma forma, Coelho é diferente da maioria.

Com 58 anos, o autor brasileiro vendeu, nos últimos 18 anos, mais de 65 milhões de cópias de seus livros, em 59 idiomas, tornando-o um dos autores populares de maior sucesso do mundo. Cada novo livro, que ele escreve em português, envolve uma operação extraordinária de tradução, impressão, distribuição e marketing.

Depois, ao que parece, Coelho relaxa e contabiliza as vendas. A chave que abriu esse mundo de sonho dos escritores foi "O Alquimista", uma fábula de inspiração sobre um pastor espanhol quando criança. Ele viaja para as pirâmides do Egito em busca de um tesouro e, em vez disso, encontra sua "lenda pessoal" ou destino. Coelho disse que até agora esse título, primeiramente publicado no Brasil em 1988, vendeu perto de 27 milhões de cópias em todo o mundo, inclusive 2,2 milhões nos EUA.

Atualmente, entretanto, a atenção de Coelho está voltada para seu novo romance semi-autobiográfico, "O Zahir", que já superou a lista dos mais vendidos em muitos países e será publicado nos EUA em setembro, pela HarperColins. Até agora, "O Alquimista" (HarperSanFrancisco, 1993) foi seu único sucesso nos EUA, e Coelho espera que "O Zahir" recupere sua posição no país.

"Nos EUA, não sou o mesmo que na França, Espanha ou Alemanha", disse ele em uma longa conversa na sala de jantar de vidro, que deixa ver o jardim de sua casa confortável, mas simples, nos Pireneus. "Nunca rompi a barreira da imprensa. Nos EUA, sou um grande sucesso, mas não uma celebridade."

Apesar de sua fama, Coelho, de porte esbelto e cavanhaque, não vive como uma celebridade. Ele passa a metade do ano no Rio de Janeiro, sua cidade natal, mas é nesta pequena aldeia que diz se sentir mais a vontade. Quando não está escrevendo, ele corta a grama, pratica arco e flecha, lê e se mantém em contato com o mundo eletronicamente.

"Tenho 500 canais de televisão e moro em uma aldeia que não tem padaria", disse ele rindo. O que o trouxe aqui, porém, não foi o apelo bucólico da França rural, mas sim o fato de St. Martin ficar a apenas 16 km do templo da Virgem Maria de Lurdes.

"Sou católico", disse ele, "não tão comprometido com a igreja, mas com a idéia da Virgem, a face feminina de Deus. Desde 1992 que passo todas as noites de Ano Novo em Lurdes. Também passo a hora do meu nascimento na caverna. É um lugar com significado para mim."

Não que Coelho seja um autor católico romano. De fato, com suas descrições de viagens interiores e buscas espirituais genéricas, muitos de seus livros tocaram leitores em países com culturas e crenças tão diferentes quanto Egito e Israel, Índia e Japão. Sua explicação?

"Sei que temos as mesmas perguntas", disse ele. "Mas não temos as mesmas respostas."

A jornada do próprio Coelho não foi sem incidentes. Sua adolescência rebelde levou seus pais a enviarem-no a um hospital psiquiátrico em três ocasiões. No início dos anos 70, vivia como hippie, dedicado ao "sexo, drogas e rock'n'roll", em suas próprias palavras. Então, escreveu letras de canções de protesto que levaram o governo militar a prendê-lo três vezes. Mais tarde, trabalhou na indústria fonográfica --até ser demitido.

Com 36 anos, decidiu seguir o caminho medieval dos peregrinos para Santiago de Compostela, no noroeste da Espanha. Isso resultou em seu primeiro livro, "O Diário de um Mago", que, apesar de mal ter sido notado no Brasil na época, persuadiu-o não só a se dedicar a escrever, mas também a buscar significado em sua vida. Seu segundo livro, "O Alquimista", também vendeu lentamente, até se tornar o sucesso de vendas na França no início dos anos 90 --e depois no mundo. Coelho diz que a busca continua até hoje, porém.

"Cada livro é um pouco mais sobre mim", explica. "O que me surpreende é quando sou chamado de autor espiritual. Para mim, a busca pela felicidade é uma mentira, como se houvesse um ponto em que tudo mudasse, e você se tornasse sábio. Acredito que a iluminação e a revelação vêm na vida diária. Procuro alegria, a paz da ação. Precisamos de ação. Teria parado de escrever anos atrás se fosse pelo dinheiro."

No "Zahir", ele escreveu sobre um escritor, pois conhece o assunto, disse ele. Acontece que esse autor, que conta a história na primeira pessoa, também é imensamente bem sucedido; seus livros são sucessos mundiais e, como os livros de Coelho, são ocasionalmente destruídos por críticos literários, mas sustentados por leitores leais. A história, porém, não é a de Coelho.

Na narrativa, a mulher jornalista do autor, Esther, decide se tornar correspondente de guerra, depois desaparece misteriosamente. Eventualmente, ele encontra um jovem místico do Cazaquistão, chamado Mikhail, que parece conhecer o paradeiro de Esther, mas insiste que o autor precisa se conhecer melhor para se reunir a ela. Depois de uma série de aventuras e sinais, o autor vai para o Cazaquistão.

"O Zahir", conceito árabe emprestado de um conto de Jorge Luis Borges, é descrito por Coelho como um pensamento ou uma idéia que gradualmente se torna uma obsessão. No livro, o "Zahir" do narrador é a Esther desaparecida.

"Tem muito de mim no livro", disse Coelho, apesar de observar que está casado com a artista Christina Oiticica, há 26 anos. "Mas o personagem é mais egoísta. Também sou egoísta, mas não da mesma forma. Esse sujeito é bem sucedido, tem tudo, mas sua mulher o deixou. O valor mais importante --o amor-- está faltando. O que está errado com essa instituição chamada 'casamento'? O que está errado com essa instituição chamada 'busca pela felicidade'?"

Como acontece com os livros de Coelho freqüentemente, inclusive com outros sucessos de vendas como "Veronika Decide Morrer" e "Onze Minutos", as críticas de "O Zahir" vão da admiração ao insulto, sendo que as mais duras vêm dos que acreditam que Coelho posa de guru.

"Eu nunca digo que sou um guru", insistiu. "Essa pessoa não existe. Os leitores só querem saber se eu tenho as mesmas perguntas que eles. Mas se eu desse uma resposta, eles logo iam ver que era falsa. Muitos leitores me enviam mensagens dizendo que suas vidas mudaram. Mas eu não mudei essas pessoas. Tudo estava pronto. Talvez o livro as tenha mudado."

Quanto às críticas, ele diz ser estóico.

"Ninguém vai mudar a forma como escrevo", disse ele. "Borges disse que há apenas quatro histórias para se contar: uma história de amor entre duas pessoas, uma história de amor entre três pessoas, a luta pelo poder e a viagem. Todos nós autores escrevemos essas mesmas histórias ad infinitum."

"Mas a única coisa que não suporto", prosseguiu, "é a crítica ao leitor, que o leitor é burro. Você pode falar mal de mim, dos meus livros, mas não pode falar mal do leitor. É como dizer: 'Todo mundo é burro; menos o crítico'. Isso não é justo."

Publicado no UOL Online em 30/08/2005.

O bom de blog

Diogo Mainard, colunista da Veja Online

"Cesar Maia montou uma cadeia de internautas para comentar, em tempo real, a entrevista de Antonio Palocci na televisão. Enquanto os jornalistas caíam em êxtase diante do ministro da Fazenda, engolindo todas as suas explicações, o blog de Cesar Maia anunciava: 'Palocci acaba de mentir'."

Cesar Maia tem um blog. Os leitores de O Globo o acusam de dedicar mais tempo ao blog do que à prefeitura do Rio de Janeiro. Não foi o que aconteceu hoje. Ao longo do dia, ele já mandou apreender um lote de calcinhas com a imagem de Santo Expedito, atendendo à solicitação de um morador. E, atendendo à solicitação de outro morador, já mandou averiguar por que um fiscal da prefeitura interditou o Bar Getúlio no dia do aniversário da morte de Getúlio Vargas. Cesar Maia garante que só trabalha no blog fora do horário de expediente. Pena. No momento, ele tem muito mais utilidade como blogueiro do que como prefeito. Deveria bloguear o tempo todo. Santo Expedito pode esperar.

O blog foi inaugurado em 31 de julho. A idéia inicial era difundir, para o público em geral, os boletins que ele remetia diariamente a um grupinho de leitores, com comentários sobre matérias publicadas na imprensa. No último domingo, o blog mudou. Para provar que Palocci mentia, Cesar Maia fez o que a imprensa deixou de fazer: reproduziu um contrato milionário entre a prefeitura de Ribeirão Preto, na gestão Palocci, e a Leão & Leão, a empresa suspeita de pagar-lhe uma propina mensal de 50.000 reais. A cópia do contrato chegou a Cesar Maia por meio de um internauta de Ribeirão Preto. De lá para cá, o blog publicou muitos outros contratos comprometedores. Até eu encontrei um, de 1994, para as obras do conjunto habitacional Jardim Heitor Rigon, em que Palocci favoreceu a Leão & Leão, e foi condenado pelo Tribunal de Contas de São Paulo a uma multa de 150 Ufesp, prontamente saldada por ele.

Com a publicidade recebida pelo furo palocciano, o blog de Cesar Maia virou uma central de denúncias contra o governo federal. Um funcionário do fundo de pensão Previ forneceu-lhe informações sobre a Trevisan Associados, a empresa de auditoria metida em todas as encrencas do petismo, do caso Gtech à compra da produtora do filho de Lula, por parte da Telemar. Um morador de Belo Horizonte confidenciou-lhe os segredos de Carla, uma das recepcionistas de Jeany Corner, atual acompanhante de Rogério Buratti e, segundo ela, ex-acompanhante do próprio Palocci. Um espião infiltrado no Tribunal de Contas da União revelou-lhe detalhes sobre os gastos exorbitantes do casal Lula e Marisa com cartões de crédito corporativos.

A acusação contra Palocci acabou com o último engodo petista: o de que a corrupção foi fruto das alianças políticas de 2002. Na verdade, ela é muito mais antiga e abrangente. O petismo corrompeu todos os ambientes em que se instalou: a administração local, a igreja, o sindicato, o movimento social, a cultura, a escola. A imprensa também foi contaminada. A reação dos jornalistas à entrevista de Palocci foi mais uma prova de seu vexaminoso sectarismo. A morte do petismo será boa para o jornalismo. Será boa para todo mundo.

Publicado na Revista Veja (edição 1920).

A voz dos EUA no Mercosul

Sheila Machado, do JB Online

Analistas advertem que, mais do que vigilância na Tríplice Fronteira, aliança estratégica americana com o Paraguai permite que Washington ganhe poder de barganha dentro do bloco regional.

Com a justificativa de estarem preocupados com a instabilidade política de Bolívia, Venezuela e Equador, os Estados Unidos elegeram o Paraguai seu novo aliado estratégico na América do Sul. Soldados americanos estão na região do Chaco, com uma missão denominada humanitária, com destacamento de médicos militares e treinamento de policiais e militares paraguaios. Na teoria, a operação acaba no fim do ano que vem. Mas a ampliação da base de Mariscal Estigarribia, onde estão instalados, sugere que as tropas vão permanecer por mais tempo.

À primeira vista, pode parecer que a principal preocupação de Washington é vigiar a Tríplice Fronteira, de onde acredita que partiriam financiamento para ações terroristas, ou ficar de olho no líder venezuelano Hugo Chávez. Mas para analistas consultados pelo JB, a aproximação entre os dois países tem um objetivo mais amplo: fazer do Paraguai a voz dos EUA no Mercosul, capaz de aproveitar espaços deixados por eventuais desavenças entre os principais integrantes do bloco.

- A Casa Branca iniciou uma nova política estratégica, pois não tem nenhum outro aliado no Cone Sul, países são em sua maioria críticos a Washington. A escolha por Assunção não é surpresa. O Paraguai é mais aberto aos americanos, tanto a elite quanto a maioria da população. São mais influenciáveis do que na Argentina, por exemplo - explica Marta Lagos, diretora do instituto de análise política sul-americana Latinobarómetro.

Um dos motivos, aponta a cientista política paraguaia Milda Rivarola, é a personalidade da administração de Nicanor Duarte, ''na contramão das tendências social-democratas dos demais membros do Mercosul: Argentina, Brasil e Uruguai''.

- Além disso, há a debilidade da política externa, suscetível a alinhar-se com uma potência exterior em troca de promessas de abertura de mercado a o que quer que seja. Dessa vez, a negociação é da entrada de produtos têxteis paraguaios na Flórida - conta.

Para Washington, afirma Lagos, conseguir ter representação de seus interesses dentro do Cone Sul pode significar a manutenção da hegemonia mundial, pelo menos econômica, a longo prazo:

- Os EUA estão preocupados com o papel que a China pode ter no Mercosul. Os chineses são um poder econômico que cresce a cada dia e voltam suas atenções para a América do Sul. Os americanos temem perder influência na região. Ou pior, serem dominados por Pequim que, com mais aliados, teria mais poder político e de barganha.

Carlos Pereyra Mele, do Centro de Estudos Estratégicos Sul-Americanos (CEES), não mede palavras ao comentar a aproximação entre EUA e Paraguai.

- É uma cacetada no Mercosul. O que Washington quer é desestabilizar um mercado que não segue suas imposições - afirma.

A questão econômica foi justamente a justificativa paraguaia para deixar Argentina e Brasil um tanto de lado e se voltar aos EUA. Em entrevista ao jornal Última Hora, de Assunção, o vice-presidente Luis Castiglioni criticou os vizinhos.

- Aqui na região só tivemos decepções. Onde está o espírito de solidariedade quando até agora seguimos suportando os impedimentos à exportação? Não necessitamos de migalhas. O Paraguai precisa e tem o direito de buscar um relacionamento digno com outras nações - disse Castiglioni, comentando a criação pelo Mercosul dos ''fundos estruturais''. - Não queremos doação de dinheiro, queremos mercado.

- Argentina e Brasil vêm subestimando Uruguai e Paraguai no âmbito do bloco e essa é uma atitude que deveria ser corrigida - concorda Rosendo Fraga, analista do instituto Nueva Mayoría, de Buenos Aires.

Segundo o cientista político, os EUA estão explorando não só o desequilíbrio mercantil, mas também o passado do Cone Sul:

- Sem dúvida, o menosprezo que o Paraguai sente tem raízes históricas na Tríplice Aliança (formada por Brasil, Argentina e Uruguai, que entre 1864 e 1870 atacaram o vizinho, na Guerra do Paraguai).

A aproximação entre Washington e Assunção significa ainda uma mudança da política ianque não só em relação ao Mercosul. A curto prazo, e em caso de emergência, diz respeito à toda a América do Sul. Fraga lembra que a prioridade da Casa Branca para o segundo mandato de George Bush era clara: delegar ao Brasil a liderança regional, tendo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva como um homem respeitado o suficiente para conter a influência de Chávez no continente.

- Mas a força de paz da ONU que atua no Haiti, sob comando brasileiro, gerou dúvida no Pentágono sobre se o Brasil está disposto a usar força em caso de desestabilização na região. Neste momento, Lula encontra-se acuado pela crise política; em conseqüência, diminuiu sua capacidade de contrabalançar o venezuelano como ator político. Além disso, Chávez demonstra claro interesse de investimento na Argentina, Brasil e Uruguai, mas não no Paraguai. Estes fatos levaram o secretário de Defesa americano, Donald Rumsfeld, a visitar Assunção duas vezes este ano e a procurar estabelecer ali um ponto de apoio para intervir, se houver crise - completa.

Recursos naturais chamam a atenção

Além da estratégia político-econômica, outras razões se delineiam para os Estados Unidos terem escolhido o Paraguai como parceiro na América do Sul e a base militar de Mariscal Estigarribia como local de estabelecimento de suas tropas. A instalação fica a 100 km do poço de gás natural Independencia 1, que se comunica no subterrâneo com as valiosas reservas de Tarija, na Bolívia. Além disso, descobriu-se que embaixo do gás paraguaio há um enorme lençol de petróleo enorme, ainda não avaliado.

- O conflito Ocidente-Oriente aprofundou objetivos de estratégia. Os EUA buscam controlar recursos renováveis e não-renováveis - adverte Carlos Pereyra Mele, do Centro de Estudos Estratégicos Sul-Americanos.

Washington e Assunção negam qualquer interesse nesse sentido, dentro do acordo de permissão de exercícios militares americanos. Mas chama a atenção também a proximidade do aqüífero Guarani, uma das maiores reservas de água doce do mundo, que cobre uma área de 1,2 milhão de km² na América do Sul. O Brasil abriga 70% do tesouro, 19% está na Argentina, 6% no Paraguai e 5% no Uruguai.

- O alerta é da ONU: daqui a 20 anos as guerras não serão mais por petróleo, mas por água - lembra Mele.

A presença militar americana em solo paraguaio não é permanente. Mas é renovável. E não agradou aos parceiros do Mercosul, principalmente Brasil e Argentina, embora estes não possam fazer nada para impedir.

- O Paraguai pode trazer os EUA para casa, porque é soberano. Mas na esfera de acordos de cooperação militar é de bom tom consultar os vizinhos do bloco. A situação é delicada - avalia Clóvis Brigagão, do Centro de Estudo das Américas.

Os países-membros do bloco do Cone Sul só poderiam levar a questão a órgãos internacionais, como a ONU ou a Organização dos Estados Americanos (OEA), se seu espaço aéreo ou terrestre fosse violado pelos ianques.

- A continuidade da missão americana vai depender principalmente da mobilização civil dos paraguaios. É dever do povo obrigar o presidente Nicanor Duarte a retificar a atitude - resume Mele.

Mas em pelo menos uma questão o Paraguai passou por cima da diplomacia. Mesmo sendo signatário do Tratado de Roma - que em 1998 relativizou o conceito de soberania para permitir que autores de crimes contra a humanidade fossem julgados por tribunais internacionais -, Assunção concedeu imunidade penal às tropas americanas. Isso significa que, caso os soldados pratiquem homicídio, genocídio ou outros delitos, estão livres de responder por eles no sistema judiciário local ou na Corte Penal Internacional, em Haia.

- Politicamente, é muito difícil os países do Tratado de Roma se reunirem para examinar uma punição ao Paraguai pelo descumprimento do acordo - lamenta Brigagão. (S.M.)

Publicado no Jornal do Brasil, em 28/08/2005.

"Lula está vivendo o pior momento de sua vida"

Por Francesc Relea, enviado especial do El País

Denise Paraná é autora de "Filho do Brasil", a única biografia autorizada já escrita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O livro foi traduzido para vários idiomas e está prestes a ser adaptado para a filmagem de um documentário. Paraná trabalhou com Lula em seus tempos de líder sindical e conhece bem a família do presidente. Sente na própria carne as dificuldades pelas quais o líder brasileiro atravessa.

"Creio que ele está vivendo o pior momento de sua vida. É um homem totalmente honesto, eu colocaria minhas mãos no fogo", afirma a biógrafa.

Denise Paraná lembra as origens desse brasileiro que nasceu em uma família pobre de Pernambuco:

"É filho de dona Lindú, que tinha muitos filhos. O marido a abandonou. Lula sempre se sentiu responsável por melhorar as condições de vida dos que o cercavam. Foi ampliando o raio de ação: no início foi sua família, depois o sindicato e depois o partido que fundou, até se transformar em um líder reconhecido em todo o mundo, representante dos países pobres. Esse foi seu projeto de vida, nunca foi ganhar dinheiro. E poderia ter ganhado há muito tempo".

El País - Como explica que o Partido dos Trabalhadores (PT), o partido de Lula, esteja envolvido em um escândalo de corrupção de grandes proporções?

Denise Paraná - Creio que a situação escapou ao controle de Lula, porque ele é um grande integrador. Incluiu forças políticas que não podiam ser incluídas em seu projeto, porque não têm nada a ver com o mesmo. Quando chegou ao governo, tentou construir uma grande aliança com quase todos os setores da sociedade, para que todo mundo ficasse bem, o que desembocou numa grande crise. Creio que o centro da questão, que se pode comprovar em sua biografia, é que Lula foi um grande agregador, e não um homem de grandes rupturas. Não fez as rupturas necessárias.

EP - A senhora acredita que havia um setor do PT que era muito inclinado a práticas corruptas?

Paraná - Para surpresa e espanto de todos os petistas e de todo o Brasil, surgem indícios de que já havia coisas anteriores. Essa foi a grande surpresa: o PT podia ser objeto de muitas críticas, mas ninguém punha em dúvida a honestidade do partido.Essa crise política pode ser comparada com as etapas de um paciente com câncer. Diante do primeiro diagnóstico, a reação inicial dos militantes petistas é negar a evidência: o médico e o laboratório estão enganados. Quando outras provas mostram a doença de maneira irrefutável, começam a aceitar a realidade. Nessa fase, primeiro se rebelam e depois ficam deprimidas. No caso das primeiras denúncias de corrupção contra o PT, a primeira reação das pessoas foi muito virulenta. Diziam que eram invenções da imprensa.

EP - E agora?

Paraná - Assistimos à crise mais profunda da história do PT e do Brasil. Como diz Cristovam Buarque, não é uma crise política, é uma crise histórica. Vivemos um grande momento histórico. Para muita gente o PT é um projeto de vida.

EP - Até que ponto essa crise do PT afeta as pessoas?

Paraná - Muitos amigos meus ficaram doentes. Cada vez que abrem o jornal e lêem a notícia de uma nova denúncia, a febre aumenta e têm de ficar de cama.

EP - Desapareceram todas as ilusões? Resta lugar para a esperança?

Paraná - As pessoas estão muito decepcionadas porque o papel transformador do PT evaporou. Mas a crise tem uma leitura positiva: está ocorrendo uma ruptura brutal desse modelo conservador e surgirá algo novo e bom para uma situação melhor. Sou otimista.

EP - Que futuro a senhora vislumbra?

Paraná - Estou convencida de que o PT se redefinirá de uma forma mais democrática internamente. É como a ave Fênix, ressurgirá das cinzas. Há muita força na base do PT.

EP - Há quem preveja seu fim...

Paraná - Isso não ocorrerá. Desde sua fundação o PT teve muitas crises, embora nenhuma tão grave. Eu mesma pensei em mais de uma ocasião que o partido se despedaçaria, porque as tensões internas eram muito grandes. E no final não acontecia nada. Pelo contrário, saía reforçado de cada crise. Creio que o elemento integrador do PT foi a figura de Lula, que até hoje foi fundamental para evitar a desagregação do partido. Não sei o que acontecerá agora.

EP - Qual seria a reação de Lula se acabasse submetido a um julgamento político para sua destituição?

Paraná - Seria o fim. Ele dedicou toda a sua vida a construir uma sociedade mais justa. Se fosse acusado de ser um homem corrupto e incapaz de administrar o país, seria sua condenação à morte e seria profundamente injusto. Estou convencida de que isso não acontecerá, porque não há qualquer indício de que ele tenha feito algo para seu enriquecimento pessoal.

EP - Como a senhora analisa o papel de José Dirceu, e qual era a relação dele com o presidente Lula?

Paraná - Creio que tinham uma relação de confiança profunda. Lula confiava muito em José Dirceu, apesar de nunca ter sabido o que Dirceu estava fazendo. Se soubesse, não teria deixado que as coisas fossem tão longe. Estou convencida de que quando Lula diz que foi traído é porque se sentiu assim.

EP - Lula cometeu um erro ao dedicar-se a viajar pelo mundo para desempenhar o papel de líder dos países pobres, descuidando excessivamente da política interna?

Paraná - Lula é uma pessoa que delega. Não há dúvida de que delegou a articulação política interna a José Dirceu e confiou nele. Talvez demasiado. Isso só se soube depois. As coisas estavam funcionando muito bem e era impensável que pudesse acontecer uma coisa dessas.

EP - Os brasileiros que se decepcionaram com essa crise podem recuperar a ilusão?

Paraná - Creio que muita gente passará por um longo processo de sofrimento. A crise não terminou. As pessoas estão fazendo quimioterapia; não vão morrer, mas nesta fase sofrem muito. Um dos efeitos colaterais desse tratamento é a falta de confiança no futuro e o aparecimento da idéia terrível de que todos os políticos de todos os partidos são iguais. Não são iguais, são muito diferentes. A base da democracia é o reconhecimento das diferenças. Crer que todos são iguais, e que portanto é melhor votar no corrupto porque dá mais privilégios, é uma tragédia.

EP - Qual foi a melhor e a pior parte dos dois anos e meio de governo Lula?

Paraná - A melhor foi comprovar que a democracia brasileira era suficientemente forte para colocar no poder um homem de origem humilde, que a esperança venceu o medo e que o sonho era possível, apesar de que só pôde cumprir-se parcialmente. É claro que a pior foi a grande desilusão pela corrupção de uma parte importante da cúpula do PT.

EP - Há alternativa para Lula dentro do PT?

Paraná - Não vejo nenhuma. Lula deixaria um vazio muito grande, mas destruir o PT e salvar Lula seria trágico, porque o partido teve um papel social e político determinante no Brasil.

Publicado em 27/08/2005 no UOL Notícias.

PT viveu como borboleta, mas morre como lagarta

Do colunista Josias de Souza, da Folha Online

Há cadáveres demais no noticiário. Insepultos, produzem um fedor lancinante. Como em toda grande tragédia, a contagem das vítimas do "PTgate" é lenta. A pilha de corpos cresce dia a dia. Na sexta-feira, o pedaço de uma laje que se imaginava segura desabou em Ribeirão Preto. Caiu na cabeça de Antonio Palocci. Gravemente ferido, o ministro está na bica de escalar o monturo.

Talvez tenha sido esse excesso de mortos que levou muitos a passar batido pelo defunto mais ilustre: o próprio PT. Morreu também o pobre. E, suprema desgraça, não foi para o céu. O atestado de óbito do PT foi elaborado por uma legista insuspeita. É chamada de "Evidência".

No espaço do formulário reservado à causa mortis, ela escreveu: suicídio. De fato, o PT há muito vinha adotando uma conduta estranha, algo psicótica. Parecia empenhado em provar que também os partidos políticos ceifam a própria vida.

A exemplo de muitos outros suicidas, o PT viu-se às voltas com a falta absoluta de auto-estima. Passou a portar-se como um Narciso às avessas. Cuspiu na própria imagem. No governo, a psicose partidária alçou níveis extremos. No Planalto, na Esplanada, nos desvãos de autarquias e estatais, nas prefeituras municipais, por onde passou o PT fez o pior o melhor que pôde.

Em bilhete ainda não divulgado, o PT deixou anotados os termos que deseja ver esculpidos em sua lápide: "Aqui jaz a ética que, ao cair na vida, se esqueceu de maneirar". Há um corre-corre em torno do caixão. Quem vê a algaravia de longe pensa que estão tentando ressuscitar o morto. De perto, porém, percebe-se que tudo não passa de uma briga pelo espólio.

Numa ponta do esquife, está José Dirceu, o ex-chefão da Casa Civil. Ele vagueia como zumbi em meio aos despojos. Conspira contra a inevitável expulsão do aliado Delúbio Soares, gestor das arcas espúrias. No outro extremo, encontra-se Tarso Genro. Alçado à incômoda posição de inventariante do caos, ele escava as ruínas partidárias à procura de uma dignidade que todos sabem inexistente.

Importa pouco saber quem sairá vitorioso da contenda. Seja quem for, aquele PT ilusório, portador de esperanças vãs, jamais voltará à vida. O partido do futuro foi irremediavelmente reduzido à condição de partido do faturo.

A morte do PT foi prematura. Ao experimentar os prazeres do poder no apogeu da juventude, o partido tornou-se alvo da cobiça universal aos 25 anos. Entregou-se com avidez à nova aventura. Sucumbiu às relações plurais sem zelar pela escolha dos parceiros. Não soube dosar as próprias pulsões.

Em meio à atmosfera de volúpia, o PT foi pilhado em novas e inusitadas poses. O partido da castidade deu preferência às posições ideológicas mais exóticas. Aceitou gostosamente o assédio dos interesses mais contraditórios. Deu azo a perversões homéricas.

Atônito, o Brasil espiou os primeiros laivos da orgia através de frinchas abertas no mármore do Palácio do Planalto. Súbito, o país descobriu no imenso telhado de vidro do PT um posto de observação mais adequado. Dali, pôde-se acompanhar sem restrições o strip-tease da virtude.

Súbito, a legenda imaculada integrou-se à baixeza comum a todos os partidos.
O PT provou-se capaz das maiores abjeções. Mal acordou do sonho presidencial e já foi dormir com o PL, o PP, o PTB e o naco mais assanhado do PMDB. O partido hipotecou a alma às conjunções mais impudicas. Escorado na castidade presumida do pseudopresidente Lula, tornou-se a maior evidência de que, com o tempo, qualquer um pode atingir a perfeição da impudência.

A ascensão do PT enganara até os analistas mais argutos. Aqui e alhures. Mencionem-se dois exemplos eloqüentes:

1) em novembro de 2002, falando à Folha, o historiador inglês Eric Hobsbawm viu na vitória de Lula um dos poucos eventos do começo do século 21 que inspiravam "esperança";

2) no prefácio de um livro lançado em dezembro de 2002 ("Lula, o filho do Brasil", de Denise Paraná), o escritor Antônio Cândido enxergou no PT um partido "vivo", capaz "de escolher no arsenal ideológico os instrumentos adequados à ação política transformadora desse Brasil pesado de iniqüidades seculares".

No mesmo livro de Denise Paraná, à altura da página 147, o próprio Lula foi indulgente consigo mesmo. Pintou assim o seu auto-retrato: "(...) Se eu não tivesse algumas [qualidades pessoais] não teria chegado aonde cheguei. Eu não sou bobo. Acho que cheguei aonde cheguei pela fidelidade aos propósitos que não são meus, são de centenas, milhares de pessoas."

Decorridos dois anos e oito meses de seu mandato, Lula encontra-se na constrangedora posição do presidente supostamente honrado que preside uma esbórnia inaudita e continua empunhando a bandeira da moralidade. Assume o papel de bobo que recusava. O Lula de 2005 não faz jus nem à imagem que fez de si mesmo nem às avaliações de Hobsbawm e Cândido nem à confiança dos 52.788.428 votos que recebeu em 2002.

A morte do PT mergulha o país numa perigosa fase de desencanto. É como se a idade da ética houvesse terminado. À medida que floresce o "Mula" (Movimento Unificado dos Lulistas Arrependidos), o brasileiro se dá conta de que Deus está em toda parte, mas é o Tinhoso quem controla a política brasileira.

Um fantasma assombra as noites de Lula na Granja do Torto. Trata-se da assombração do próprio Lula, quando era um puro e ingênuo socialista. A alma penada ronda-lhe os sonhos, brandindo faixas com bordões inconvenientes. Coisas como "Abaixo a corrupção" e "Diga não aos 300 picaretas do Congresso".

Borboleta da política brasileira, o PT protagoniza no seu o caso uma inusitada volta ao casulo, túmulo da lagarta. O partido cavou na enciclopédia um verbete indigno de sua história. Descerá às profundezas dos livros como larva. Deixa para a posteridade um rastro pegajoso de perversões.

Publicado na Folha de São Paulo em 21/08/2005.