domingo, setembro 25, 2005

"Lula está vivendo o pior momento de sua vida"

Por Francesc Relea, enviado especial do El País

Denise Paraná é autora de "Filho do Brasil", a única biografia autorizada já escrita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O livro foi traduzido para vários idiomas e está prestes a ser adaptado para a filmagem de um documentário. Paraná trabalhou com Lula em seus tempos de líder sindical e conhece bem a família do presidente. Sente na própria carne as dificuldades pelas quais o líder brasileiro atravessa.

"Creio que ele está vivendo o pior momento de sua vida. É um homem totalmente honesto, eu colocaria minhas mãos no fogo", afirma a biógrafa.

Denise Paraná lembra as origens desse brasileiro que nasceu em uma família pobre de Pernambuco:

"É filho de dona Lindú, que tinha muitos filhos. O marido a abandonou. Lula sempre se sentiu responsável por melhorar as condições de vida dos que o cercavam. Foi ampliando o raio de ação: no início foi sua família, depois o sindicato e depois o partido que fundou, até se transformar em um líder reconhecido em todo o mundo, representante dos países pobres. Esse foi seu projeto de vida, nunca foi ganhar dinheiro. E poderia ter ganhado há muito tempo".

El País - Como explica que o Partido dos Trabalhadores (PT), o partido de Lula, esteja envolvido em um escândalo de corrupção de grandes proporções?

Denise Paraná - Creio que a situação escapou ao controle de Lula, porque ele é um grande integrador. Incluiu forças políticas que não podiam ser incluídas em seu projeto, porque não têm nada a ver com o mesmo. Quando chegou ao governo, tentou construir uma grande aliança com quase todos os setores da sociedade, para que todo mundo ficasse bem, o que desembocou numa grande crise. Creio que o centro da questão, que se pode comprovar em sua biografia, é que Lula foi um grande agregador, e não um homem de grandes rupturas. Não fez as rupturas necessárias.

EP - A senhora acredita que havia um setor do PT que era muito inclinado a práticas corruptas?

Paraná - Para surpresa e espanto de todos os petistas e de todo o Brasil, surgem indícios de que já havia coisas anteriores. Essa foi a grande surpresa: o PT podia ser objeto de muitas críticas, mas ninguém punha em dúvida a honestidade do partido.Essa crise política pode ser comparada com as etapas de um paciente com câncer. Diante do primeiro diagnóstico, a reação inicial dos militantes petistas é negar a evidência: o médico e o laboratório estão enganados. Quando outras provas mostram a doença de maneira irrefutável, começam a aceitar a realidade. Nessa fase, primeiro se rebelam e depois ficam deprimidas. No caso das primeiras denúncias de corrupção contra o PT, a primeira reação das pessoas foi muito virulenta. Diziam que eram invenções da imprensa.

EP - E agora?

Paraná - Assistimos à crise mais profunda da história do PT e do Brasil. Como diz Cristovam Buarque, não é uma crise política, é uma crise histórica. Vivemos um grande momento histórico. Para muita gente o PT é um projeto de vida.

EP - Até que ponto essa crise do PT afeta as pessoas?

Paraná - Muitos amigos meus ficaram doentes. Cada vez que abrem o jornal e lêem a notícia de uma nova denúncia, a febre aumenta e têm de ficar de cama.

EP - Desapareceram todas as ilusões? Resta lugar para a esperança?

Paraná - As pessoas estão muito decepcionadas porque o papel transformador do PT evaporou. Mas a crise tem uma leitura positiva: está ocorrendo uma ruptura brutal desse modelo conservador e surgirá algo novo e bom para uma situação melhor. Sou otimista.

EP - Que futuro a senhora vislumbra?

Paraná - Estou convencida de que o PT se redefinirá de uma forma mais democrática internamente. É como a ave Fênix, ressurgirá das cinzas. Há muita força na base do PT.

EP - Há quem preveja seu fim...

Paraná - Isso não ocorrerá. Desde sua fundação o PT teve muitas crises, embora nenhuma tão grave. Eu mesma pensei em mais de uma ocasião que o partido se despedaçaria, porque as tensões internas eram muito grandes. E no final não acontecia nada. Pelo contrário, saía reforçado de cada crise. Creio que o elemento integrador do PT foi a figura de Lula, que até hoje foi fundamental para evitar a desagregação do partido. Não sei o que acontecerá agora.

EP - Qual seria a reação de Lula se acabasse submetido a um julgamento político para sua destituição?

Paraná - Seria o fim. Ele dedicou toda a sua vida a construir uma sociedade mais justa. Se fosse acusado de ser um homem corrupto e incapaz de administrar o país, seria sua condenação à morte e seria profundamente injusto. Estou convencida de que isso não acontecerá, porque não há qualquer indício de que ele tenha feito algo para seu enriquecimento pessoal.

EP - Como a senhora analisa o papel de José Dirceu, e qual era a relação dele com o presidente Lula?

Paraná - Creio que tinham uma relação de confiança profunda. Lula confiava muito em José Dirceu, apesar de nunca ter sabido o que Dirceu estava fazendo. Se soubesse, não teria deixado que as coisas fossem tão longe. Estou convencida de que quando Lula diz que foi traído é porque se sentiu assim.

EP - Lula cometeu um erro ao dedicar-se a viajar pelo mundo para desempenhar o papel de líder dos países pobres, descuidando excessivamente da política interna?

Paraná - Lula é uma pessoa que delega. Não há dúvida de que delegou a articulação política interna a José Dirceu e confiou nele. Talvez demasiado. Isso só se soube depois. As coisas estavam funcionando muito bem e era impensável que pudesse acontecer uma coisa dessas.

EP - Os brasileiros que se decepcionaram com essa crise podem recuperar a ilusão?

Paraná - Creio que muita gente passará por um longo processo de sofrimento. A crise não terminou. As pessoas estão fazendo quimioterapia; não vão morrer, mas nesta fase sofrem muito. Um dos efeitos colaterais desse tratamento é a falta de confiança no futuro e o aparecimento da idéia terrível de que todos os políticos de todos os partidos são iguais. Não são iguais, são muito diferentes. A base da democracia é o reconhecimento das diferenças. Crer que todos são iguais, e que portanto é melhor votar no corrupto porque dá mais privilégios, é uma tragédia.

EP - Qual foi a melhor e a pior parte dos dois anos e meio de governo Lula?

Paraná - A melhor foi comprovar que a democracia brasileira era suficientemente forte para colocar no poder um homem de origem humilde, que a esperança venceu o medo e que o sonho era possível, apesar de que só pôde cumprir-se parcialmente. É claro que a pior foi a grande desilusão pela corrupção de uma parte importante da cúpula do PT.

EP - Há alternativa para Lula dentro do PT?

Paraná - Não vejo nenhuma. Lula deixaria um vazio muito grande, mas destruir o PT e salvar Lula seria trágico, porque o partido teve um papel social e político determinante no Brasil.

Publicado em 27/08/2005 no UOL Notícias.