segunda-feira, outubro 05, 2009

O caso Polanski

Ronald Sokol*, no International Herald Tribune

A perseguição de Roman Polanski por um crime sexual cometido na Califórnia há 31 anos causou grande comoção tanto entre seus simpatizantes quanto entre aqueles que sentem que ele é um fugitivo da justiça que merece ser enviado de volta para a Califórnia e preso.

Os fatos não estão em questão. Polanski foi condenado em 1978 por um tribunal de Los Angeles pelo crime de fazer sexo com uma menor. Apesar de a vítima tê-lo perdoado e dito que ela não quer que ele vá para a prisão, apenas a visão dela não é suficiente para terminar com o inquérito.

Um crime é uma ofensa não somente contra uma vítima, mas também contra o Estado. É uma violação da ordem social e um distúrbio à harmonia social que o Estado se esforça para atingir. Depois de sua sentença, Polanski deixou o país em vez de enfrentar a prisão. Ele está foragido da Justiça há 31 anos.

Apesar da certeza da culpa e da gravidade do crime, a perseguição tardia por parte do promotor é ao mesmo tempo legal e moralmente problemática. Um advogado da promotoria em Los Angeles está tentando extraditá-lo da Suíça baseado num tratado entre a Suíça e os Estados Unidos.

Um tratado de extradição é simplesmente um acordo escrito entre dois países segundo o qual cada um concorda em entregar ao outro pessoas procuradas por crimes específicos. Isso vale para a maior parte dos crimes. É uma prática comum que um país não extradite seus próprios cidadãos. Por esse motivo a França não concordaria em extraditar Polanski, se fosse requisitada a fazê-lo, porque ele é um cidadão francês, mas como ele não tem cidadania suíça, e foi preso em Zurique, essa exceção não se aplica.

Nos Estados Unidos, um promotor público tem total liberdade para processar alguém ou deixar de fazê-lo. Nem o tribunal, a vítima ou qualquer outra pessoa pode forçar uma acusação.

A realidade é que mais crimes são cometidos do que é possível processá-los. O promotor precisa exercitar seu julgamento para saber como usar melhor o seu tempo, o tempo de sua equipe, avaliar a importância da ofensa, o perigo apresentado à comunidade, a suficiência de provas, a probabilidade de uma condenação, os gastos envolvidos e outras considerações. Esses são fatores sobre os quais o promotor de Los Angeles deveria ter pensado quando preparou os documentos de extradição.

Porém duas grandes falhas colocam dúvidas sobre a legitimidade do pedido de extradição de Polanski. A primeira diz respeito aos próprios objetivos da lei criminal. Estes normalmente são descritos como vingança, prevenção, punição e reabilitação. A vingança é amplamente reconhecida como algo ilegítimo. No caso de Polanski, nenhum objetivo legítimo parece aplicável.

Como ele não cometeu nenhum outro crime, pelo menos que nós saibamos, nas três décadas em que viveu na França e na Suíça, o objetivo de prevenir que ele não cometa mais nenhum crime não tem efeito.

Nem os de punição e reabilitação parecem aplicáveis. A punição, assim como a reabilitação, deve ser salutar, não vingativa. O propósito de ambos é permitir ao prisioneiro retornar à sociedade e funcionar num contexto social sem cometer mais crimes. Como Polanski tem vivido em Paris durante três décadas como um cidadão aparentemente seguidor das leis, esses objetivos não se aplicam. O que parece restar é a vingança.

A segunda falha é igualmente problemática. O pedido de extradição parece ser o primeiro feito desde 1978, quando Polanski se tornou um fugitivo. Apesar de o escritório da promotoria do distrito de Los Angeles dizer que buscou informações e monitorou suas viagens ao longo dos anos, não pediu sua extradição nenhuma vez.

Se Polanski tivesse se mantido incógnito e seu paradeiro fosse desconhecido, poderia haver um pouco de sentido para explicar o atraso de três décadas, mas ele é um dos diretores de cinema mais famosos do mundo. Ele não tem se escondido. Embora possa ter sido impossível extraditá-lo da França, ele poderia facilmente ter sido extraditado da Suíça há muito tempo.

Quando há um atraso de décadas por parte das autoridades da promotoria para prender e extraditar alguém e isso não pode ser explicado pronta e coerentemente, as ações do promotor parecem arbitrárias. A arbitrariedade é enfatizada pelo fato de que a vítima do crime não está motivando a perseguição.

O Tribunal Europeu de Direitos Humanos observou no caso Markovic versus Itália que "evitar o poder arbitrário" é o princípio fundamental por trás da maior parte da Convenção Europeia para os Direitos Humanos.

O mesmo princípio está implícito na Cláusula de Processo Justo da 5ª e da 14ª emendas da Constituição dos EUA. A ação governamental não deve ser arbitrária. Se for arbitrária, levanta uma forte suspeita de que o devido processo legal não foi respeitado. A decisão do promotor de Los Angeles de extraditar Polanski 30 anos depois do evento, sem uma explicação coerente para o atraso, deve ter parecido algo totalmente arbitrário para Polanski, assim como para observadores neutros.

É claro que há um valor social em desencorajar os criminosos de fugir da jurisdição. Há um valor também em ver que a Justiça é feita e em mostrar que ninguém está acima da lei. Mas esses valores podem erodir com o tempo se as circunstâncias que deram origem à necessidade de Justiça desapareceram.

Para alguns, a aplicação atrasada da lei parecerá arbitrária, um ritual de forma e não de substância. Quando o Estado ameaça a prisão, isso precisa ser visto como um ato justo. Se não, zomba da própria lei através de seu ato arbitrário de tentar cumpri-la.

* Ronald Sokol é advogado em Aix-en-Provence, França. Ele foi professor da Escola de Direito da Universidade de Virgínia e é autor de "Justice after Darwin".

Publicado no UOL Internacional.