quinta-feira, maio 11, 2006

'Terra em Transe' restaurado e em DVD

Do crítico Rubens Ewald Filho, no UOL Cinema

"Terra em Transe", o seminal filme de Glauber Rocha (1938-1981), foi, com o espetáculo "O Rei da Vela", de José Celso Martinez Correa, uma das origens do Tropicalismo. Agora o filme sai em disco duplo em DVD e em cópia restaurada em ótima qualidade.

Com epígrafe de Mario Faustino ("tanta violência, mas tanta ternura"), o longa conta com a participação marcante, mas totalmente sem falas da então modelo Danuza Leão.

Quando foi lançado em vídeo, o filme teve um de seus rolos trocados e ninguém percebeu, já que se tratava de uma narrativa confusa.

Longe de ser um filme fácil, "Terra em Transe" prenunciava o cineasta caótico que cada vez mais Glauber Rocha se tornaria, além de discursivo, exagerado, polêmico, mas sempre brilhante.
Para o estrangeiro, o filme é de difícil compreensão, mas o brasileiro identifica melhor os arquétipos de nossa antiga política (personagens parecidos com Jânio Quadros, a velha turma do "café-com-leite", Paulo Autran como Carlos Lacerda etc).

Mas é sempre preciso ver que se trata de uma alegoria. A câmera vem do mar (Autran entra em cena como o político Diaz carregando uma bandeira e um crucifixo), que relembra as origens portuguesas (Clóvis Bornay aparece fantasiado na praia, e Diaz é coroado pelo Rei Momo) e tudo se degenera em samba, carnaval e cerveja (na época ainda não era pizza). "Terra em Transe" é uma sátira implacável da nossa política e se mantém atual nesse sentido.

Com a mágica câmera na mão de Dib Lutfi, o filme é um extraordinário exercício de estilo e um retrato psicológico do que é ser brasileiro, do que é fazer política no Brasil, onde, como diz José Lewgoy numa cena, "tudo no fim dá certo".

Numa revisão, impressionam várias coisas em "Terra em Transe":

1) como o filme foi premonitório, prevendo as guerrilhas que iriam suceder ao AI-5 da ditadura e exemplificadas pela atitude de Jardel Filho;

2) todo o filme é um delírio de um poeta que se rebela contra a situação e vai morrer por isso. Então tudo é permitido e justifica as ousadias narrativas, hoje já um pouco absorvidas e mal copiadas. Resiste especialmente bem o lado poético do diretor;

3) toda a marcação é teatral, encenada com a câmera perseguindo os atores, e não o contrário;

4) o filme usa excepcionalmente poucas locações e tipicamente cariocas, como o Teatro Municipal, a Galeria Menescal e o Parque Laje, mas sem revelar que é o Rio.

Sem dúvida, "Terra em Transe" ainda é uma obra-prima.

Como extras, o disco 2 traz um excelente e longo documentário "Depois do Transe", com cenas do documentário "Cinema Novo", de Joaquim Pedro de Andrade, e cenas inéditas do filme (como Sobras da Montagem), além de depoimentos do fotógrafo Luiz Carlos Barreto, do montador Eduardo Escorel, do produtor Zelito Viana, do câmera Dib Lutfi, do compositor Sérgio Ricardo e dos atores Paulo Autran, Francisco Milani e José Lewgoy. Tem ainda o curta "Maranhão 66" (de Glauber, sobre a posse de José Sarney), trailer de cinema (montado por Walter Lima Jr.), vídeo sobre a restauração e galeria de fotos.