sábado, março 01, 2008

O menino que vende livros

Na revista Época desta semana, uma matéria com Markus Zusak, autor do best-seller "A menina que roubava livros", que só no Brasil já vendeu 270 mil exemplares. Ainda não li o livro - para ser sincero, muito provavelmente não o lerei, tão ocupado estou com o grande Bukowski -, mas a matéria é interessante, como é toda aquela que fala do duro ofício de escrever. Nesta, quem faz as perguntas da (longa) entrevista são os leitores, todos identificados pelo nome e local de origem. Achei legal. Espero que vocês também achem.

A partir de que momento em sua vida o senhor teve interesse em escrever livros? (João Felipe Cândido da Silva, Salto, SP)

Markus Zusak – Eu quis ser um escritor quando tinha 16 anos e li os livros certos para mim. Foi por causa daquele sentimento de ir virando páginas sem sequer perceber, tão imerso eu ficava no mundo de cada livro. Foi nessa época que tirei os olhos das páginas e pensei: "É isso que eu quero fazer da minha vida". Decidi que seria um escritor e nada iria me impedir.

Qual é a maior virtude de um escritor e quais os maiores problemas para escrever um livro? (Magno Dias, São Paulo, SP)

Zusak – A mais importante virtude para um escritor é que ele não deve ter medo de falhar. Eu falho todos os dias. Falhei milhares de vezes escrevendo A Menina Que Roubava Livros, e esse livro agora significa tudo para mim. Claro, também tive muitas dúvidas e medos sobre o livro. Mas as melhores idéias nele vieram para mim quando estava trabalhando já por algum tempo sem, aparentemente, nenhum resultado. Falhas têm sido meus melhores amigos como escritor. Elas o testam para que você descubra se tem o que é preciso para ver além.

De onde vem tamanha criatividade? O senhor lia muito quando era criança, ouvia muitas histórias? (Carolina Sperandio de Almeida, Tatuí, SP)

Zusak – Meus pais não falavam inglês quando vieram para a Austrália e, por isso, foi muito importante para eles que seus filhos tivessem bom domínio da língua. Nós sempre estávamos cercados por livros, sempre lendo. Também acho que meu amor por escrever e por histórias vem das que eles contavam sobre a própria infância na Alemanha e na Áustria.

Qual é a melhor maneira de relacionar os pontos mais importantes de uma história? Também escrevo e acho difícil a construção de começo, meio e fim, pois tudo precisa estar muito bem relacionado. (Josie Lima, Nova Iguaçu, RJ)

Zusak – Para mim, é como construir uma parede de tijolos. Escrevo do começo do livro para o final. Isso pode soar óbvio, mas o que quero dizer é que nunca escrevo fora da seqüência. E a razão simplesmente é que, quando escrevo o próximo momento importante, preciso sentir como se eu tivesse feito tudo junto com os personagens até chegar àquele ponto. Dessa forma, posso sentir exatamente o que eles sentiram. Quando você escreve uma história ou o primeiro capítulo, você esquece alguns tijolos em certos lugares e muitos tijolos em outros. Para conectar a maioria das partes do livro, você tem de ter certeza de que tudo está no lugar certo até aquele ponto.

Por que a história de "A menina que roubava livros" é contada do ponto de vista da morte? (Maria da Glória Jucá, Fortaleza, CE)

Zusak – Porque fez sentido para mim. Há um velho ditado que fala que a guerra e a morte são as melhores amigas. Então, pensei: "Quem pode ser um narrador melhor para um livro que se passa na Alemanha nazista?". A morte estava em todo lugar naquele tempo. O verdadeiro avanço, porém, foi quando percebi que a morte deveria ser mais vulnerável, e não macabra e todo-poderosa. Pensei: "E se a morte tivesse medo dos humanos?". Isso pareceu inesperado, mas também pensei que fazia sentido. Afinal, a morte está na iminência de ver todos os nossos maiores desastres e todas as terríveis coisas de que os humanos são capazes. Minha idéia era que a morte contaria essa história, na tentativa de provar a ela mesma que os homens podem ser belos e altruístas.

Como conseguiu transformar a morte em algo tão sublime? (Janete Saraiva, Fortaleza, CE)

Zusak – Tive a idéia de que a morte poderia distrair a si própria de nossa feiúra pela observação de nossa beleza – e da beleza do mundo a nosso redor. Também me senti livre para usar a linguagem de um jeito delicadamente diferente. Por exemplo: a morte se refere ao céu, às árvores e à terra como pessoas, e não como coisas. Quando ela diz “o céu, que era vasto e azul e magnífico”, vê o céu como um colega. Gosto da idéia de que tudo é parte de outro, e que a morte não é diferente disso. É somente outra parte de tudo que nós vivenciamos naturalmente. Quis que esse livro se aproximasse de encontrar a beleza imersa em um tempo tão terrível.

A menina que roubava livros" é muitas vezes relacionada a "O diário de Anne Frank". Como o senhor vê essa comparação? Anne Frank foi uma inspiração ou uma fonte de compreensão da época nazista? (Gabriel Almeida Ferreira, Barra Mansa, RJ)

Zusak – O fato de ser mencionado na mesma sentença que Anne Frank é uma honra. A personagem Liesel, de meu livro, é uma jovem garota que vive no mesmo período, o que explica essas comparações entre as duas. De alguma forma, vejo Liesel estranhamente como o outro lado de Anne Frank. Ela é uma personagem de uma história de ficção. É alemã e está escondendo um jovem judeu em seu porão. Fazendo justiça: o poder da história de Anne Frank quase não pode ser mensurado. É algo inesquecível e se sustenta sozinho e acima de qualquer outra coisa.

Por que seu livro fez tanto sucesso no Brasil? (Betina Weber, Varginha, MG)

Zusak – O sucesso desse livro foi um enorme choque para mim. Francamente, pensei que ninguém fosse lê-lo. Imaginei as pessoas descrevendo-o aos amigos assim: "Bem, se passa na Alemanha nazista, é narrado pela morte, quase todo mundo morre e tem 550 páginas". Foi justamente o que me libertou para escrevê-lo exatamente do jeito que eu quis. Alguém disse que os brasileiros são muito emotivos e que meu livro é muito emotivo. Talvez por isso o Brasil seja o país em que fez mais sucesso. Seja o que for, para mim foi uma grande recompensa fazer sucesso no Brasil.

Seu livro deverá virar filme. O senhor vai escrever o roteiro? (Gilmara Figueiredo, Linhares, ES)

Zusak – Felizmente, não. Levei 16 anos treinando para escrever esse livro. Não acho que poderia me transformar em um escritor de roteiros em um ano ou algo assim. Deixo isso para os especialistas.

Mesmo com um leve crescimento, o déficit de leitura ainda assombra os países de terceiro mundo, mesmo os emergentes, incluindo o Brasil. Para o senhor, esse baixo consumo literário está relacionado mais com a educação ou com a economia? (Silvio Belarmino Tristão, Franca, SP)

Zusak – Isso é algo que não posso comentar, principalmente porque não vivo no Brasil. Posso fazer uma comparação com a Austrália e com a cultura de leitura daqui. Aqui nós temos boas vendas de livros, mas é geralmente uma pequena porcentagem das pessoas que está comprando boa parte desses livros. Parece que a educação e a economia seguem lado a lado. Sem dinheiro para amparar crianças e aumentar o nível educacional, pode ser mais difícil. No meu caso, foram meus pais que nos - a mim e a minha irmã - na leitura. Então, encorajar os pais talvez seja tão importante quanto as crianças.

Tenho 21 anos e estou escrevendo um livro. Ainda não sei a quem procurar e o que fazer para publicar. Jovens escritores parecem não ter muito espaço no mercado editorial. O que você indica a eles? (Alessandro de Souza, Varginha, MG)

Zusak – Particularmente tento não me preocupar com isso. A melhor maneira de criar visibilidade é escrever algo que se destaque. Escrevi quatro livros antes de "A menina que roubava livros" e, mesmo que eu veja todas as falhas daquele livro, ainda percebo que trabalhei de forma muito mais dura e por muito mais tempo naquele livro do que nos demais - e compensou. Sei que não há um livro exatamente como ele em nenhum lugar, e acho que é no próprio trabalho em si que está a resposta. Assisti a muitos amigos divulgarem livros após livros enquanto eu estava escrevendo "A menina que roubava livros", mas pensei: "Não, não corra". Seja verdadeiro com o que você está fazendo. Escreva algo que é ambicioso e se esforce para ser algo muito diferente - você pode falhar, mas ao menos você está dando o seu melhor tiro. Ninguém pode acusá-lo de ter sido ordinário. Para ser publicado, você tem de ter algo sobre o qual os editores possam dizer: "Isso é diferente de qualquer outra coisa publicada neste ano, no ano passado e do que vou publicar no próximo ano".

Talvez a minha pergunta tenha um caráter conservador e, como estou no início da leitura, temo ser mal interpretado. Mesmo assim, gostaria de saber se o título da sua obra não representa um estímulo à prática do furto em livrarias. No meu entender, o título faz uma apologia a esse tipo de prática - que considero salutar, principalmente se o praticante o faz por uma questão de necessidade e dela tira todo o proveito. (Raimundo da Silva Sousa, Salvador, BA)

Zusak – Tem havido pessoas que vieram até mim e disseram "Eu roubei este livro" quando me pediram para autografá-lo. Mas, de uma maneira geral, não acho que seja um grande encorajamento para as pessoas roubarem livros de bibliotecas ou livrarias. Sei que quando nós amamos os livros ou seus personagens, freqüentemente imaginamos que somos um deles. A maioria das pessoas é assim. Não acho que o roubo de livros aumentará consideravelmente desde que meu livro saiu!

Qual o limite entre fatos da vida real e invenções numa obra de ficção? (Decio Mori, Mairiporã, SP)

Zusak – De uma maneira geral, o livro "A menina que roubava livros" é possivelmente 10% ou 15% realidade e 85% ficção. "Eu sou o mensageiro" (outro grande sucesso do autor) seria 2% real e 98% ficção. O estranho é que os momentos que são reais são freqüentemente os mais difíceis de acreditar...

Um dos grandes deflagadores de conflitos e guerras tem sido, ao longo da História, a intolerância quanto às diferenças raciais. No Brasil convivemos com pessoas de muitas origens diferentes e há miscigenação. Como você vê isso? Conhece outro lugar no mundo onde acontece isso sem causar conflitos? (Graziela Fracalanza Lippel, Caraguatatuba, SP)

Zusak – Estive no Brasil por somente pouco mais de uma semana - provavelmente não o suficiente para avaliar o nível de compreensão racial. Encontrei pessoas de um vasto espectro de repertórios e amei isso no Brasil. Pelo que vi ao redor do mundo, percebi que as pessoas vão sempre encontrar algo de diferente e de igual uns sobre os outros - de raça à religião, até qual time de futebol eles torcem. Tenho de ser honesto: isso é algo que não observei para analisar. Tudo o que sei é que sempre achei os lugares com um leque diverso de culturas mais excitantes.

Também sou nascido em outro país, a Grécia, mas moro no Brasil há bastante tempo. Fiz daqui minha pátria mãe. Assim sendo, gostaria de saber qual a diferença que você sente entre o seu país e o Brasil. Existe similaridades na pobreza, insegurança, falta de escolas? (Patrick Dimon, São Paulo, SP)

Zusak – Na Austrália há uma vasta porcentagem de assalariados médios - quase a ponto de os australianos tentarem dizer que somos uma sociedade sem classes -, o que não é a absoluta verdade. A questão é que a maioria das pessoas se encontra em algum lugar no meio do nível de abundância, e não em uma das pontas. Algo que me surpreendeu no Brasil foi haver uma área claramente muito rica bem ao lado de uma área muito pobre, em vez de essas divisões geográficas acontecerem gradualmente. Às vezes eu me sentia extremamente seguro no Brasil, às vezes não... Mas em toda cidade há lugares onde é inseguro ir sozinho. O nível de insegurança depende somente de quantos desses lugares existem.

Escritores australianos renomados na cena internacional são pouco conhecidos. Já os americanos são sucesso de vendagens em qualquer canto do mundo. A que você atribui isto? A qualidade dos livros americanos é realmente superior? Faltam bons escritores na Austrália ou as chances estão cada vez menores? (Felipe Alves, São José, SC)

Zusak – Há somente 20 milhões de pessoas na Austrália, enquanto nos Estados Unidos há 300 milhões. Por essa razão eles têm uma indústria da escrita muito maior e mais produtiva - e mais escritores. Essa é a principal razão. Eles têm os meios para investir mais em seus escritores - para colocá-los em viagens, fazer uma boa publicidade deles e ter certeza de que eles têm bastante exposição. Os australianos comumente precisam ser bem-sucedidos tanto na América quanto na Inglaterra antes de começarem a serem bem-sucedidos em outros países. Em alguns casos, como foi o meu, até mesmo no seu próprio país de origem.

Lendo "Eu sou o mensageiro" pude observar que você ainda tem fé, sobretudo, nas pessoas. Como foi intercalar essa fé nos humanos com a merecida falta de esperança e assombro demonstrado pela Morte, narradora de "A menina que roubava livros"? Os mensageiros da atualidade podem mudar a visão da existência humana formada pela Morte? (Gabriel Almeida Ferreira, Barra Mansa, RJ)

Zusak – Eu devo ser um eterno otimista… Eu não posso dizer o que as pessoas comuns podem fazer, mas eu acredito que essas coisas são pessoais. Eu estou mais interessado no que a pessoa pode fazer um dia, de uma forma maior algumas vezes, mas mais freqüentemente de formas pequenas. Deve haver dúzias de pequenas decisões que fazemos a cada dia. Eu sempre tento dizer a mim mesmo: "Tome boas decisões". Às vezes eu faço e às vezes não... mas, como todo mundo, eu acho que eu estou tentando tomar mais boas do que más.

Por que os livros no Brasil são tão caros? Qual a fórmula para barateá-los em versões mais populares? (Samuel Pedro, Rio de Janeiro, RJ)

Zusak – Eu não sei exatamente. Na Austrália os livros são muito caros também. Eu sei que há lugares, como os Estados Unidos e a Inglaterra, nos quais os livros de brochura são muito baratos. Eles freqüentemente publicam uma edição cara, de boa qualidade e capa dura, e uma mais barata, feita de brochura. Aqui nós temos algo intermediário: uma edição muito bem feita de brochura... mas que também é muito cara. Eu não tenho a solução para tornar os livros mais baratos.

Algum crítico já escreveu algo "desagradável" sobre algum livro seu? Como você reage diante de críticas negativas? E diante das construtivas, ou dos elogios? Algum comentário crítico - bom ou ruim - já influenciou algum trabalho seu? Se sim, qual? (Letícia Leal, São Gonçalo, RJ)

Zusak – Sempre haverá coisas negativas sendo ditas sobre um livro. Você simplesmente não pode agradar a todos. Às vezes eu penso sobre isso dessa forma. Geralmente quando termino um livro eu fico acordado a noite toda. Você pode escrever a última sentença às cinco da manhã. O sol pode estar quase saindo. Essa é uma das maiores sensações de todas - e você sabe que é suficiente. Isso é o que realmente importa. E você também sabe outra coisa... Neste mesmo momento, todas as críticas negativas estão dormindo na cama.

Eu tento não ouvir o que dizem sobre minha escrita. Para ser um escritor eu penso que eu preciso gostar de estar só. Então vem um tempo em que você esquece de tudo e isso se transforma em história. O livro é tudo, e o que as pessoas disserem sobre é inútil nessa hora. O melhor é pensar que ninguém vai lê-la. É sempre quando um livro realmente começa a engrenar para mim.

Por que os brasileiros não têm como hábito a leitura de livros? Será que é porque eles são caros? Ou não temos essa cultura de ler um bom livro? (Luiz Vicente, São Paulo, SP)

Zusak – Essa é uma questão que não me sinto qualificado para responder. É justamente o que acontece também na Austrália, mas numa extensão menor. Eu acho que as artes em geral merecem muito mais atenção da mídia, assim como é feito em alguns países europeus. Seria um ótimo começo, eu acho.

Markus, como é para um escritor tão jovem como você saber que sua obra foi tão bem recebida e alcançou o coração de tantas pessoas, em várias partes do mundo? (Graciane A. de Paula, Belo Horizonte, MG)

Zusak – Isso me surpreendeu, mas eu realmente não penso muito sobre isso. Eu não saio da cama pensando "sou um escritor muito conhecido". Eu geralmente saio da cama pensando "Ah, não, como eu vou melhorar esse livro que estou escrevendo? Eu não consigo nem escrever a primeira página de trabalho!" O desafio está sempre em escrever e é no que eu quero me concentrar. Tão importante quanto ser bem conhecido, não me entenda mal. Eu não a considero como garantia. E ainda algo para ser aproveitado, e eu sou grato pelas pessoas fantásticas que publicaram meus livros e pelas que os lêem.

Escritores costumam, com alguma freqüência, incluir-se em suas histórias, ou pelo menos incluir algum conceito tirado de si mesmos, emprestando vozes para os personagens. No seu caso, há algum personagem que melhor o reflita? E Liesel, foi inspirada em alguém em particular? (Leonardo Lamha, Macaé, RJ)

Zusak – Sim, definitivamente há parte de mim em tudo o que escrevo. Todos os personagens têm partes de mim neles. Ed Kennedy (de "Eu sou o mensageiro") é provavelmente um pouco de como eu me sentia quando tinha dezenove anos, embora não fosse exatamente daquele jeito. Você só põe pedaços de você mesmo nos personagens. Até mesmo a morte tem elementos do meu caráter nela. É inevitável.